Quando escreveu e filmou, em 1967, a comédia Primavera para Hitler (depois transformada no musical e na refilmagem batizados de Os Produtores), Mel Brooks partiu do princípio de que nada ofenderia e diminuiria mais o genocida austríaco do que torná-lo objeto de ridículo — daí a opção de retratar Hitler como uma diva cheia de fricotes. O roteirista e diretor escocês Armando Iannucci usa o mesmo princípio em A Morte de Stalin (The Death of Stalin, Inglaterra/França/Bélgica/Canadá, 2017), que estreia nesta quinta-feira no país: na noite de 5 de março de 1953, depois de assinar uma das suas listas diárias de desafetos a ser executados e entregá-la ao chefe do aparato de repressão, Lavrenti Beria (Simon Russell Beale), o dirigente soviético sofre uma sapituca, bate as botas e estica as canelas — mas não sem antes perder o controle da bexiga e deixar uma extensa poça de urina no carpete. Apavorados com a ideia de associar a palavra “morte” ao nome “Josef Stalin” numa mesma frase, os asseclas do ditador tentam asseverar seu estado inanimado dando pulinhos e fazendo manobras desengonçadas em volta do cadáver, a fim de não ensopar os sapatos no xixi — e o espectador se vê às gargalhadas, daquelas que fazem escorrer água dos olhos. Stalin, o mais implacável, temido e poderoso comandante da União Soviética, o homem responsável pela morte de milhões, passa desta para a próxima cheirando a mictório público: em mais uma sulfúrica farsa política, Iannucci, o criador da série Veep (que reduz a pó os bastidores da Casa Branca), ombreia com Mel Brooks.
Como anuncia o título, entretanto, não é de Stalin que o filme trata, mas do que se segue a ele: não apenas o súbito vácuo do poder e os conchavos decorrentes, como a extrema infantilização política dos quadros do Kremlin. Figurões como o titubeante comissário Georgi Malenkov (Jeffrey Tambor), o desfrutável Vyacheslav Molotov (Michael Palin), o bufão Nikita Kruschev (Steve Buscemi), o sinistro Beria e os oportunistas Nikolai Bulganin (Paul Chahidi) e Lazar Kaganovich (Dermot Crowley) fazem reuniões de teatro do absurdo. Kruschev, empurrado para a tarefa humilhante de mestre de cerimônias do funeral (“Cortinas com ou sem franzido?”, pergunta, ansioso, seu assistente), revela-se bem mais que um pândego, e começa uma guerra com Beria pelo controle da situação e da doidinha filha de Stalin, Svetlana (Andrea Riseborough). Todos fazem o que podem para neutralizar o filho bêbado do ditador, Vasily (Rupert Friend). Quando as ordens e contraordens provocam um massacre nas ruas de Moscou, entra em cena o grosseirão marechal Zhukov (Jason Isaacs), que arruma a bagunça do jeito de sempre.
Os atores são um primor, e não há um deles sequer que não transforme sua cena em um evento. Numa participação pequena, Paddy Considine, por exemplo, faz maravilhas como o funcionário da rádio que tem de chamar a orquestra e a pianista temperamental (Olga Kurylenko) de volta ao palco para repetir desde o início uma apresentação: ela não foi gravada, e Stalin quer para já uma cópia. A plateia, louca para ir para a cama, ouve o nome do dirigente e já entra numa daquelas rodadas de aplausos que eram questão de vida ou morte — ninguém era besta de ser o primeiro a parar. Como em Veep, Iannucci se vale do pastelão — mas, aqui, para expor o mais puro terror.
Publicado em VEJA de 6 de junho de 2018, edição nº 2585