A I Guerra Mundial revelou a crueldade das armas químicas, o que levou à sua proibição, em 1925. Um século depois, porém, o governo da Síria e outras partes envolvidas na guerra civil no país usam essas armas repetidamente para ferir e matar homens, mulheres e crianças. Neste mês, um ataque químico na cidade de Douma matou 42 pessoas. Médicos descreveram vítimas em colapso, ofegantes, espumando pela boca. Vídeos compartilhados por ativistas mostram o sofrimento de crianças agonizantes. Não dá para imaginar o que sentiam quando o próprio ar que respiravam destruía seus pulmões.
A Human Rights Watch, organização internacional de direitos humanos, analisou pelo menos 85 ataques na Síria desde agosto de 2013, a maior parte vinda do governo. Em alguns, foi utilizado o sarin, agente nervoso incolor, mas, na maioria, os ataques envolveram um produto químico mais acessível, o cloro. O Estado Islâmico, por sua vez, fez uso do gás sulfúrico-mostarda, causador de bolhas. Todos geram sofrimento indescritível e morte.
A Convenção sobre Armas Químicas reforçou a proibição desse tipo de arsenal há 21 anos, exigindo dos Estados que eliminassem seus estoques e a capacidade de produção. O mundo celebrou quando a Síria assinou a referida convenção, em 2013. O governo, porém, tem quebrado sua promessa ao fazer uso repetido de armas químicas. Por atribuírem a Assad a responsabilidade sobre o ataque de Douma, os governos dos Estados Unidos, Reino Unido e França conduziram os ataques retaliatórios de 13 de abril. Ainda é preciso aguardar uma investigação completa.
Nenhum governo ou grupo que usa armas químicas deve ficar impune. Identificar os responsáveis e levá-los à Justiça é essencial. O Brasil poderia ser uma voz relevante nesse assunto. Temos um assento no conselho executivo da agência da ONU encarregada de tratar desse tema, a Organização para a Proibição de Armas Químicas (Opaq). Peritos internacionais nomeados no âmbito da Opaq concluíram no ano passado, assim como outras organizações, que a Síria havia utilizado armas químicas. O Brasil tem lançado dúvidas sobre essas conclusões. Sua representação na Opaq chegou a sugerir, em novembro, que o testemunho de vítimas de ataques químicos deveria ser considerado válido somente quando realizado na presença dos perpetradores, o que soa absurdo. Questionar os resultados das investigações apenas incentiva o governo sírio e outros atores sem escrúpulos a continuar matando e ferindo civis com produtos tóxicos.
O Brasil deveria se unir ao clamor internacional para que o secretário-geral da ONU, António Guterres, contorne o Conselho de Segurança, paralisado pelo veto russo, e nomeie peritos independentes para identificar os responsáveis pelo ataque de Douma. Além disso, deveria condenar as violações da Convenção pela Síria e pressionar pela suspensão do país na Opaq até que cumpra suas obrigações. Cem anos após a I Guerra Mundial, o mundo precisa acabar com a impunidade por ataques químicos. A inação não deve ser uma opção perante tamanha atrocidade.
Publicado em VEJA de 25 de abril de 2018, edição nº 2579