Que venham os importados
Fim de barreira incentiva marcas estrangeiras sem fábrica no Brasil a trazer novos modelos para o país, mas governo estuda como ajudar indústria nacional
Em agosto, o Brasil foi condenado pela Organização Mundial do Comércio (OMC) por ter usado barreiras anticompetitivas no comércio de carros. A investigação nasceu de queixas apresentadas pela União Europeia e pelo Japão a respeito da política criada pelo governo brasileiro com o intuito de privilegiar a indústria nacional. O principal objeto da reclamação foi o Inovar-Auto, plano de incentivo à indústria nacional aprovado em 2012 pela ex-presidente Dilma Rousseff. Pelo programa, foram concedidas condições tributárias favoráveis às empresas com fábrica no Brasil. Ao mesmo tempo, criou-se uma barreira adicional aos carros importados, que ficavam sujeitos a sobretaxas de até 30 pontos porcentuais no imposto sobre produtos industrializados (IPI). Era evidente que o plano concebido pela equipe de Dilma, em sintonia com os executivos da indústria nacional, sofreria uma reprimenda da OMC. O programa estabeleceu, na prática, dois sistemas: um válido para empresas com fábrica no país e o outro para as restantes, uma disparidade vetada pela entidade.
A OMC determinou a anulação do Inovar-Auto. O Brasil vai recorrer, o que deve arrastar a disputa para 2018. Mas, de qualquer maneira, até o desfecho do julgamento, o Inovar-Auto já terá caducado. Com vigência até 31 de dezembro deste ano, o programa deverá ser substituído por um novo plano, batizado de Rota 2030. Técnicos do governo e representantes das empresas vêm se reunindo em Brasília às quartas-feiras em busca de um consenso sobre as regras.
Diante do tamanho dos interesses envolvidos e das divergências entre os objetivos de cada um dos negociadores, as conversas têm sido difíceis. A esta altura, o plano já deveria estar pronto, mas as negociações vão se prolongar por mais algum tempo. Parte das empresas e uma ala do governo buscam uma maneira de proteger a indústria nacional, enquanto outra ala do governo se esforça para manter o programa dentro das normas do comércio internacional.
Na verdade, os quatro anos de Inovar-Auto mudaram um pouco a paisagem brasileira. Para fugirem do tarifaço, algumas fabricantes decidiram abrir unidades no Brasil. A BMW, por exemplo, estabeleceu uma fábrica na cidade de Araquari, em Santa Catarina, com capacidade de produção para até 32 000 veículos por ano. Audi, Jeep e Land Rover seguiram o mesmo caminho. Por força do Inovar-Auto, as marcas instalaram unidades de produção no Brasil, mas os volumes totais de vendas acabaram sendo decepcionantes, e os investimentos feitos no país ficaram bem abaixo daqueles feitos na China, no México e em países do Leste Europeu. Enquanto isso, as marcas que não aderiram ao plano amargaram uma queda brutal nas vendas. A Kia, que traz seus carros principalmente da Coreia do Sul, chegou a vender no mercado brasileiro 80 000 veículos em 2011. Em 2017, o número não chegará a 7 000 unidades.
A falta da concorrência dos importados representa uma notícia negativa. O tempo das “carroças”, na expressão usada pelo ex-presidente Fernando Collor, ficou para trás, mas sem competição a indústria nacional tende a produzir veículos mais defasados em relação aos vendidos nos mercados mais desenvolvidos. “Os carros trazidos do exterior não só acrescentam competitividade ao setor, dando mais opções para o consumidor, como também criam parâmetros para aumentar a qualidade e a segurança dos veículos nacionais”, diz José Luiz Gandini, presidente da Kia no Brasil. Ele diz que muitos itens que passaram a equipar parte da frota nacional, como a câmera de ré e o motor de três cilindros, chegaram ao Brasil primeiro em modelos importados.
Agora, com a perspectiva de fim da barreira aos importados, as marcas estrangeiras sem fábrica no Brasil já se preparam para aumentar seu volume de importação. A Kia deverá trazer ao menos três novos modelos no próximo ano. As chinesas Geely e Lifan e a coreana SsangYong sinalizaram igualmente que voltarão a comercializar seus veículos no Brasil. A também chinesa JAC, que chegou a anunciar a construção de uma fábrica na Bahia, continuou focada apenas na importação.
Neste momento, o governo e a indústria quebram a cabeça para encontrar uma fórmula que incentive os investimentos no Brasil sem burlar as normas da OMC. Estuda-se a possibilidade de tributar os veículos de acordo com a cilindrada, como é feito atualmente, mas haveria uma sobrecarga tarifária para as empresas que não cumprissem metas como melhoras nos níveis de consumo e de poluição dos motores. “Por isso, não há razão para apostar em uma queda no preço dos carros”, diz Antonio Megale, presidente da Anfavea, entidade que representa as montadoras.
Outro ponto seria, mais uma vez, privilegiar de alguma maneira aqueles que se dispuserem a investir no Brasil. Abre-se uma brecha para que o regime diferenciado entre montadoras nacionais e importadoras perdure. Pode parecer razoável, mas os carros vindos de fora já pagam tarifa de importação de até 35%. É uma barreira e tanto, suficiente para evitar a inundação de importados. O número de carros feitos no exterior vendidos no mercado brasileiro fica atualmente abaixo de 10% do total.
O Brasil tem se esforçado para aprimorar a sua imagem internacional e pleiteou ser aceito pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Para fazer parte desse grupo de países avançados, é preciso seguir certos parâmetros tributários e comerciais. Técnicos do Itamaraty, que responde pela missão brasileira na OMC, estão acompanhando as discussões, para assegurar que nenhuma regra seja infringida. O Ministério da Fazenda, enquanto isso, está preocupado com os possíveis benefícios tributários da proposta e o consequente impacto fiscal nas contas do governo. Para evitar que o programa crie renúncia de recursos, a proposta é que os benefícios sejam dados depois de as empresas de fato cumprirem os requisitos — no Inovar-Auto, as empresas eram contempladas antecipadamente. “O impacto fiscal surgiria somente a partir de 2021”, diz uma fonte do governo. O esforço dos negociadores do governo e da indústria é para que o Rota 2030 saia até o fim do mês. Mas uma parte bastante interessada no assunto está fora das conversas: o consumidor.
Publicado em VEJA de 18 de outubro de 2017, edição nº 2552