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Quem escapa de Odete Roitman?

Morta aos 92 anos, a atriz Beatriz Segall consagrou, com sua presença avassaladora e modos aristocráticos, a vilã que melhor traduziu o Brasil nas novelas

Por Marcelo Marthe Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 17h22 - Publicado em 7 set 2018, 07h00
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  • A certa altura do ano de 1988, a atriz Beatriz Segall se divertia com o fato de curiosos e jornalistas não pararem de ligar para sua casa imbuídos de uma missão obsessiva: investigar junto às suas empregadas o que a patroa tinha em comum com sua personagem inescapável na novela Vale Tudo — a megera ricaça Odete Roitman. “De mordomia, eu gosto”, declarou ela a VEJA no auge do sucesso. “Aceito plenamente o lado civilizado de Odete Roitman. O que não aceito são seus meios para conseguir manter os privilégios.” Odete Roitman foi uma vilã de repercussão tão formidável, com tal grau de identificação com os modos altivos de sua intérprete, que se fundiria para sempre à imagem da atriz. Morta na quarta-feira 5, aos 92 anos, de complicações de problemas respiratórios, Beatriz Segall sentia o peso contraditório de dar vida a um símbolo assim. “Acho que ninguém na televisão brasileira recebeu um presente tão grande como esse”, reconhecia. Mas, incomodada com o rótulo, nunca mais quis fazer vilãs. Em 2011, já octogenária, resumiu: “Pô, eu sou muito mais que Odete Roitman. Já fiz os papéis mais diversos. Eu sou uma atriz de teatro, não atriz de um papel só”.

    De fato, a atriz devia experimentar o mesmo tipo de fixação que tanto exasperava o veterano Alec Guinness: apesar de uma vida inteira de glórias no teatro e no cinema, o ator inglês era mais lembrado pelo papel do cavaleiro jedi Obi Wan Kenobi, da franquia Guerra nas Estrelas. Beatriz, aliás, foi um gigante do teatro nacional antes de explodir na novela. Filha do diretor de um prestigiado colégio carioca, recebeu uma educação impecável, que ia das aulas de francês às prendas exigidas das moças de lares abastados. Além da boa edu­ca­ção de berço, um fator contribuiria para fazer de Beatriz a grande aristocrata da TV: seu casamento com Maurício Segall, filho do pintor expressionista lituano Lasar Segall e de Jenny Klabin, oriunda de uma família culta e tradicional.

    “Atriz não pode dizer a idade. Tem a idade do personagem que interpreta.” – Beatriz Segall (1926-2018)

    Em seu primeiro impulso de se tornar atriz, ela foi demovida pelo pai. Trabalhou por uns tempos como professora de francês, mas a vocação acabaria falando mais alto ao conseguir uma bolsa para estudar interpretação em Paris. De volta ao Brasil, Beatriz se impôs nos palcos com sua verve classuda e presença avassaladora. Fez história no Teatro Oficina — em que ficaram não menos famosos seus embates com o diretor José Celso Martinez Corrêa. Apesar da idade avançada, em 2015 ainda fazia teatro.

    A partir dos anos 50, Beatriz teve participações esporádicas em produções da TV, como no surreal papel de uma mulher alienígena no seriado Lever no Espaço, patrocinado por uma fabricante de produtos de higiene, em 1957. Foi com a parceria com o noveleiro Gilberto Braga, no entanto, que Beatriz ganhou sua verdadeira estatura televisiva. Braga soube explorar sua aura aristocrática em papéis como a Celina Cardoso de Dancin’ Days (1978) e a Lourdes Mesquita de Água Viva (1980). “Era a atriz talhada para o autor, e o autor talhado para a atriz”, diz o especialista em novelas Mauro Alencar.

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    Odete Roitman foi, enfim, o auge da parceria entre Beatriz e Braga. Ela só surgiu em Vale Tudo no final do capítulo 28, em cena memorável. Pelo telefone, a ricaça — que vivia há anos em Paris — questionava se tudo continuava do jeito que gostava em sua mansão e anunciava sua volta ao Brasil. A câmera focava, em close, somente seus lábios e expressivos olhos verdes. O assassinato e a posterior resolução do “quem matou Odete Roitman?” foram daqueles eventos históricos em que o melodrama e a sociologia se fundem. Braga escreveu cinco finais para ampliar o suspense do público.

    O que tornava a personagem mesmerizante é que ela extrapolava o figurino da vilã clássica: de sua boca saíam verdades incômodas sobre o estado do país, já então indignado com a corrupção. Quando um personagem reclamou das suas negociatas com um prefeito canalha, Odete deu uma resposta aguda: “Meu filho, neste país, se você não negocia com os canalhas, fica com um leque muito pequeno de opções”. O Brasil, tanto quanto Beatriz Segall, nunca escapará de Odete Roitman.

    Publicado em VEJA de 12 de setembro de 2018, edição nº 2599

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