“Temer sempre soube”
VEJA revela trechos da delação do doleiro do PMDB, que acusa o presidente de ter recebido dois repasses da “conta-propina” administrada por Cunha
Durante mais de uma década, o doleiro Lúcio Bolonha Funaro, de 43 anos, atuou como consultor financeiro e banqueiro informal do PMDB. Seu trabalho era prospectar bons negócios e fazer com que os rendimentos oriundos desses negócios fossem distribuídos entre seus clientes preferenciais. Funaro é aquilo que no jargão político-policial também é chamado de “operador”, o encarregado de fazer a aproximação entre quem paga e quem recebe propina, o elo entre políticos corruptos e empresários corruptores. Depois de três meses de negociações, o Supremo Tribunal Federal homologou, na terça-feira 5, o acordo de delação do doleiro, que está preso há 434 dias. VEJA teve acesso ao roteiro com os detalhes sobre o que ele se comprometeu a contar às autoridades. Na lista de revelações estão subornos a parlamentares, venda de legislação e grandes esquemas de corrupção. A parte mais delicada envolve o presidente Michel Temer. São relatos em que o presidente aparece fazendo lobby para políticos, cobrando repasses de caixa dois e, também, como destinatário de propina.
O doleiro diz que nunca conversou sobre dinheiro diretamente com Temer, “pois essa interface era feita por Eduardo Cunha”, mas declara que era informado por Cunha sobre as divisões da propina. Ele garante que Temer “sempre soube” de todos os esquemas tocados pelo ex-deputado. “Temer participava do esquema de arrecadações de valores ilícitos dentro do PMDB. Cunha narrava as tratativas e as divisões (de propina) com Temer”, acusa. Num dos trechos mais comprometedores de sua delação, o doleiro afirma que Temer foi beneficiário de pelo menos dois repasses de “conta-propina” administrada por Cunha. O primeiro, de 1,5 milhão de reais, veio do grupo Bertin. O segundo, em 2014, saiu de um acerto com a JBS. Funaro conta ter intermediado um pagamento de 7 milhões de reais da JBS que tinha como destinatários Temer, Cunha e o ministro da Agricultura na ocasião, Antônio Andrade, que usou a pasta para beneficiar a empresa. O presidente, segundo ele, também usou o “caixa” de Funaro para financiar campanhas de aliados.
Nas eleições de 2012, informa o doleiro, Eduardo Cunha avisou-o de que ele precisaria arrecadar dinheiro para a campanha do então deputado Gabriel Chalita a prefeito de São Paulo. A ordem, disse Cunha a Funaro, partiu de Michel Temer. Funaro procurou o empresário Henrique Constantino, do Grupo Constantino, que tinha pleitos pendentes na Caixa, e pediu o pagamento adiantado da propina. No relato do doleiro, Constantino concordou em adiantar o dinheiro, cerca de 5 milhões de reais, mas exigiu uma confirmação de que estava atendendo mesmo a um pedido do então vice-presidente da República. Cunha, segundo Funaro, conversou com Temer, que ligou para Henrique Constantino “agradecendo a doação e dando a entender que o vice-presidente estava a par da transação e que era para esta ser efetuada”.
O doleiro conta que Temer tinha operadores em diversas áreas do governo. O “maior deles”, explica, é o advogado José Yunes: “Frequentemente Eduardo Cunha dizia que Yunes fazia o branqueamento das propinas destinadas a Temer por meio de sua incorporadora Yuny”. Em julho, VEJA revelou que a família de Temer era proprietária de dois escritórios, uma casa e um andar inteiro de um prédio comprados diretamente da família de José Yunes. Na parte que acusa Temer de tentar impedir a delação de Joesley Batista, assunto que deve ser alvo da próxima denúncia contra o presidente, Funaro relata que “Joesley procurou Michel Temer e outros membros do PMDB” e avisou-os de que “estava cuidando do Lúcio e que a situação estava sob controle, requisitando favores e boa vontade do governo em troca disso”. Nas páginas seguintes, os principais pontos da delação de Lúcio Funaro.
OS HOMENS DO PRESIDENTE
Lúcio Funaro entregou aos investigadores um calhamaço de documentos contra três dos mais importantes aliados do presidente Michel Temer: Henrique Eduardo Alves, ex-ministro do Turismo, Moreira Franco, o atual chefe da Secretaria-Geral da Presidência e hoje o ministro mais poderoso do Palácio do Planalto, e o ex-ministro Geddel Vieira Lima, amigo íntimo do presidente, em cujo apartamento a polícia apreendeu 51 milhões de reais, em Salvador. Entre os documentos estão registros de trocas de mensagens de celular, históricos de voos do jatinho particular do doleiro, planilhas de pagamentos e extratos bancários. Funaro citou os três em fraudes milionárias que envolviam os cofres da Caixa Econômica Federal. Funcionava assim: ora Funaro, ora o ex-deputado Eduardo Cunha fazia os contatos com empresários interessados em obter empréstimos junto à CEF. Depois de negociar os valores da propina, Cunha agilizava a liberação dos recursos com a ajuda de Moreira e Geddel. Quando o dinheiro saía, a propina era paga às empresas do doleiro, que, então, providenciava a partilha entre o grupo. Segundo Funaro, empresas pagaram um total de cerca de 170 milhões de reais em propinas ao partido. Cunha era quem definia a parte de cada um no esquema. O delator conta que, em apenas uma operação, realizada com o grupo Bertin em 2009, o ministro Moreira Franco ficou com 6 milhões de reais.
O PREÇO DO SILÊNCIO
Em dezembro de 2015, dias depois de a Polícia Federal ter feito apreensões nos endereços de Lúcio Funaro, Joesley Batista chamou o doleiro para uma conversa em São Paulo. O empresário estava preocupado com o avanço das investigações sobre o doleiro, o que poderia escancarar suas relações criminosas com o PMDB. No encontro, na casa do empresário, Joesley e Funaro selaram um pacto de proteção mútua. Em troca do silêncio do operador, Joesley se comprometeu a lhe repassar 100 milhões de reais. Caso Funaro fosse preso, Joesley garantiria a vida financeira da família do doleiro. Funaro acabou preso em julho de 2016. Joesley cumpriu o combinado e começou a fazer os pagamentos em parcelas. Foram 4,6 milhões de reais repassados por meio de irmãos de Funaro, até que o próprio empresário decidiu virar delator e entregar o doleiro. Na delação, Funaro confessa que “não passava por sua cabeça que Joesley pudesse quebrar o pacto e delatá-lo”.
O ESQUEMA NO CONGRESSO
Funaro apresentou uma lista de medidas provisórias e projetos de lei que foram votados no Congresso a partir de acordos firmados pelo deputado Eduardo Cunha e pelo senador Romero Jucá, ambos do PMDB. “Era comum a bancada do PMDB negociar dentro da Câmara e do Senado o pagamento de propinas em troca de aprovações”, diz ele. Cunha e Jucá atuavam juntos para garantir o sucesso das propostas que renderiam propina. Ao operador cabia o papel de sempre: cobrar e receber o dinheiro das empresas beneficiadas nas votações e, depois, discutir a partilha com Eduardo Cunha. Segundo Funaro, os peemedebistas embolsaram subornos milionários em pelo menos cinco medidas provisórias que favoreceram empresas de transportes, operadoras portuárias e de planos de saúde.
VOTOS COMPRADOS
No ano passado, no período em que começou a tramitar o pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff, Eduardo Cunha e Michel Temer “confabulavam diariamente”, segundo o delator. Na véspera da votação da aceitação do processo na Câmara, Cunha enviou uma mensagem a Funaro perguntando se ele teria disponibilidade de recursos para comprar os votos necessários para que a Câmara aprovasse a abertura do processo. Sem outros detalhes, Funaro diz que disponibilizou o dinheiro.
O MILHÃO DA ODEBRECHT
Funaro tem sua versão para a até hoje misteriosa história que envolve o pagamento de 10 milhões de reais feito pela Odebrecht ao grupo político do presidente Michel Temer. O que se sabia até agora é que parte do dinheiro (4 milhões) havia sido entregue ao atual chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha. O restante teria sido repassado para a campanha de Paulo Skaf, então candidato a governador de São Paulo. Segundo Funaro, em maio de 2014, ele recebeu uma ligação de Geddel Vieira Lima. O ex-ministro disse ao doleiro que precisava buscar 1 milhão de reais no escritório do advogado José Yunes, amigo do presidente Temer, mas não tinha ninguém de sua confiança para cumprir a tarefa em São Paulo. Funaro concordou em fazer a retirada. Pegou seu carro e, acompanhado de um segurança, foi ao escritório de Yunes. Ele conta que foi recebido por Yunes em uma sala. Depois de conversar com o advogado, diz ele, a secretária e o motorista de Yunes surgiram com a caixa onde estava guardado o dinheiro. O milhão, parte dos 4 milhões destinados a Padilha, foi entregue a Geddel, em Salvador.
A CONTA SECRETA DE CUNHA
Em meados de 2015, quando o cerco ao ex-deputado Eduardo Cunha começava a se fechar na Suíça, Funaro e Joesley Batista mobilizaram advogados para tentar evitar que os dados das contas do deputado no exterior fossem enviados ao Brasil. Funaro afirma que viajou a Genebra, reuniu-se com o advogado do peemedebista e chegou a bancar os custos da defesa do ex-deputado na Europa. “Cunha achava que iria conseguir reverter a remessa de informações ao Brasil”, disse o delator. Em seu relato, Funaro também revela dados de uma conta de Cunha que, até agora, não tinha sido mencionada na Lava-Jato. Ele declara ter feito, entre 2003 e 2006, remessas para o Northern Trust Bank, em Nova York. Batizada de “Glorieta LLP”, a conta de Cunha está em nome de uma offshore da Oceania.
PROPINA PARA EUNÍCIO
Eduardo Cunha também costumava informar Funaro sobre o andamento dos projetos e das negociatas que renderiam propina ao grupo no Congresso. Era dessa forma, segundo o delator, que ele ficava sabendo das operações ilícitas em curso na Câmara e no Senado. Um dos relatos feitos por Cunha a Funaro envolve a aprovação de uma medida provisória que beneficiava a empresa Hypermarcas. O delator diz que o presidente do Congresso, Eunício Oliveira, recebeu 1,6 milhão de reais em propina. O doleiro disse que notas fiscais da Confederal, empresa pertencente a Eunício, foram usadas para mascarar o recebimento do dinheiro. O caso já é investigado pela Polícia Federal. Em sua defesa, a Confederal informou que recebeu por um serviço que acabou não sendo prestado e quer devolver os recursos.
QUEM MAIS RECEBEU
Funaro lista o nome de 25 deputados e ex-deputados que fizeram parte do que ele classifica como “a bancada do Cunha” em diferentes legislaturas na Câmara. Conta que a fidelidade ao parlamentar era comprada com dinheiro de propina, o que explica o enorme apoio que o deputado desfrutava na casa, a ponto de ter sido eleito presidente. Entre os citados estão: Sandro Mabel (2 milhões de reais), Marcelo Castro (1 milhão), Soraya Santos (1 milhão) e Alexandre Santos (1 milhão). O deputado Sérgio Souza, que foi relator da CPI dos Fundos de Pensão na Câmara, teria recebido parte de uma propina de 9 milhões de reais para não convocar para depor na CPI nem incluir no seu relatório o nome de um ex-dirigente de fundo de pensão. Por fim, Toninho Andrade, o atual vice-governador de Minas Gerais, pediu e recebeu 25 milhões de reais para favorecer as empresas do grupo JBS quando ocupava o cargo de ministro da Agricultura do governo Dilma, em 2014.
Publicado em VEJA de 13 de setembro de 2017, edição nº 2547