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Torneio das letras russas

VEJA organizou um campeonato imaginário com os dezesseis grandes autores do país — o vitorioso nem teve tempo de comemorar o título, assassinado num duelo

Por Fábio Altman Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 16h58 - Publicado em 8 jun 2018, 06h00
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    (./.)

    Talvez tenha sido a piada mais inteligente da história, e quem quiser que conte outra — mas antes assista ao vídeo no YouTube. Em setembro de 1972, depois da Olimpíada de Munique, o grupo britânico de humor Monty Python lançou um esquete de televisão, “O futebol dos filósofos”, com alemães de um lado, gregos do outro. A Alemanha entrou em campo com Kant, Hegel, Nietzsche e Wittgenstein — e Karl Marx no banco de reservas. A Grécia foi de Platão, Aristóteles, Epicuro, Arquimedes e Sócrates. O juiz era Confúcio e os bandeirinhas, Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino. Ao apito inicial, saíam todos andando pelo gramado, pensativos, taciturnos, cofiando barbas e bigodes. Nietzsche levou cartão amarelo ao acusar Confúcio de não ter livre-arbítrio. Aos 44 minutos do segundo tempo, apenas aos 44, depois de muita reflexão, Arquimedes teve uma ideia — “eureca!” — e pôs a bola parada no meio de campo para rolar. Sócrates marcou de cabeça, 1 a 0, e fim. Os gregos foram à loucura. Hegel argumentou que a realidade, a priori, era mera subordinada de éticas não naturais. Marx reclamou de impedimento.

    Inspirado nesse insuperável quadro, VEJA organizou uma Copa do Mundo da Literatura Russa, escalando dezesseis grandes autores. A saber, pela ordem de ano de nascimento: Alexander Púshkin (1799-1837), Nikolai Gógol (1809-1852), Mikhail Lérmontov (1814-1841), Ivan Turguêniev (1818-1883), Fiódor Dostoiévski (1821-1881), Lev Tolstói (1828-1910), Anton Tchekhov (1860-1904), Maksim Górki (1868-1936), Marina Tsvetaeva (1892-1941), Ievguêni Zamiátin (1884-1937), Boris Pasternak (1890-1960), Mikhail Bulgakov (1891-1940), Vladimir Maia­kovski (1893-1930), Vladimir Nabokov (1899-1977), Alexander Soljenítsin (1918-2008) e Joseph Brodsky (1940-1996). Eles foram divididos em duas chaves de oito competidores. A convite de ­VEJA, um elenco de nove especialistas no tema — tradutores, professores e jornalistas — escolheu o vencedor de cada partida, rodada a rodada, até a finalíssima. O nome do campeão aparecerá nas últimas linhas deste texto e na tabela das próximas páginas, com os resultados das porfias.

    A grande maioria de escritores do certame pertence ao século XIX, uma era de ouro para a criatividade das
    artes na Rússia

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    (Fotos/Getty Images)
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    Os times são todos inigualáveis, representantes de uma era de ouro das letras russas, o século XIX, ainda que parte deles tenha tido seu auge já no século XX e dois (Soljenítsin e Brodsky) tenham nascido nos 1900. “Os grandes escritores russos do dezenove sentiam que a Rússia estava à beira de um abismo do qual revolveria a si mesma; suas obras refletem não somente a revolução que nelas acontece, mas também a outra revolução em marcha”, escreveu o crítico e filósofo Nikolai Berdiaev, com a refinada capacidade de olhar o passado para decifrar o que viria à frente.

    Houve jogos memoráveis. Púshkin eliminou Vladimir Nabokov por 7 a 2 logo na segunda rodada, depois de vencer Lérmontov na estreia. Apesar de atuar em São Petersburgo, onde nasceu, filho de uma família de aristocratas, Nabokov perdeu como se jogasse fora de casa. Desde os anos 20 vivia no exílio em Berlim — em 1940 foi para Nova York, onde recomeçou sua vida profissional como entomologista do Museu de História Natural. Nabokov escreveu seus primeiros nove romances em russo — a partir de 1938, fez tudo em inglês. Com Lolita, de 1955, ganhou fama internacional. Já no fim da vida, instado a dizer por que nunca voltara ao país natal, respondeu: “Não regresso porque toda a Rússia de que preciso está sempre comigo: a literatura, o idioma e a minha própria infância”. Esmagado por Púshkin, apupado pela torcida, incomodado com a acusação de ter preferido o exílio, saiu de campo irritado. “Sou cosmopolita, cosmo-po-li-ta!”, disse, com a ponta da língua a tocar em dois pontos consecutivos do palato para encostar, ao último, nos dentes. “Cosmo-po-li-ta!”

    Na semifinal, Púshkin deparou com Dostoiévski, que esmagara Brodsky e Tchekhov. Foi uma contenda espetacular, o encontro de duas escolas, o verso contra a prosa, o romantismo contra o niilismo. Púshkin pôs em campo dois estrategistas de escol, Eugênio Oneguin, um dândi, e Boris Godunov, autoritário como um czar. Dostoiévski convocou um trio de atacantes matadores, Rodion Raskolnikóv, de “delicadas feições”, um homem em permanente desconforto moral, oscilando entre o crime e o castigo, e os irmãos Karamázov. Ivan, o mais velho, vivia como se não houvesse amanhã. Indagava: “Se Deus não existir, e a religião fosse extinta de todas as formas, o que aconteceria?”. A imprensa atravessou o século simplificando seu raciocínio, resumindo toda a complexidade a uma frase um tanto forçada, com jeito de fake news, “Se Deus não existe, tudo é permitido”, o que autorizaria as botinadas, sua marca registrada. Púshkin saiu coberto de glórias (apesar do placar apertado, 5 a 4) porque, como lembra a editora e tradutora Daniela Mountian, do elenco de especialistas mobilizados por VEJA, “deu um status à literatura russa falada que ela não desfrutava entre os literatos de seu tempo, usando coloquialismos e elementos folclóricos, além de ter consagrado o modelo de composição poética usado pelos russos até hoje”.

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    Dostoiévski, mesmo ele, reconheceu a excelência do parceiro de cirílico. Em 8 de junho de 1880, na inauguração de um monumento a Púshkin em Moscou, erguido por sugestão da Sociedade dos Amantes das Letras Russas, fez um discurso histórico de louvação ao adversário. Disse Dostoiévski, já muito debilitado (ele morreria oito meses depois): “Púshkin foi um grande escritor popular, como ninguém nunca o foi. Em um impulso, da forma mais adequada e clarividente, ele identificou a profundeza da nossa essência, do nosso meio, que é mais valorizado que o povo. Ao identificar o tipo do errante russo, errante até hoje, nos dias atuais; ao adivinhar, com o seu faro genial, o seu destino histórico e a imensa importância para o nosso destino futuro”.

    Do outro lado da chave, na semifinal oposta, Tolstói eliminou Gógol, que entrara animado, como o Brasil em Belo Horizonte contra a Alemanha, mas levou de 7 a 2 do autor de Guerra e Paz e Anna Kariênina. Gógol atropelara, sucessivamente, Maiakovski e Turguêniev, ambos por 6 a 3. O jogo contra Maiakovski foi inesquecível. Os cossacos torciam por Gógol — gol!, gol!, gol!, gritaram meia dúzia de vezes. Lenin e o comissariado estavam com Maiakovski, que tentou mudar seu jogo como uma nuvem de calças, mas não deu. O que fazer? Desclassificado logo na primeira rodada, teve o azar de enfrentar adversário duríssimo. Para o crítico de teatro Konstantin Aksakov, em Almas Mortas, de Gógol, de 1842, “surge-­nos aquela épica homérica antiga; reaparece o principal aspecto do caráter, do valor e da dimensão universal dessa épica”. Maiakovski, cabisbaixo, olhava para os percevejos no chão e só teve tempo de dizer uma única frase, a caminho do vestiário, despedindo-se para nunca mais: “Ressuscita-me, nem que seja só porque te esperava como um poeta, repelindo o absurdo cotidiano”.

    A final dos sonhos diários de qualquer um seria Dostoiévski x Tolstói. Nas palavras do filósofo Berdiaev, ele de novo, citado numa pequena joia da crítica literária (Tolstói ou Dostoiévski, de George Steiner), “seria possível definir dois padrões, dois tipos entre as almas dos homens, aquele inclinado ao espírito de Tolstói e aquele outro inclinado ao espírito de Dostoiévski”, um mais da planície, o outro subterrâneo. Apesar da impossibilidade desse grande embate, ninguém teria coragem de desqualificar a disputa do título entre Púshkin e Tolstói. Púshkin venceu por 5 a 4 com o que tem de melhor. Entrou declamando Amei-te, de 1829: “sem esperança e mudo em meu quebranto / morto de ciúme e timidez também / eu te amei tão sincero e terno quanto / permita Deus que te ame um outro alguém”, na tradução de Boris Schnaiderman e Nelson Ascher.

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    Não haveria mesmo como derrotá-lo, porque, na definição da pesquisadora Yulia Mikaelyan, “ele seria para a língua russa o que foi Shakespeare para o inglês e Dante para o italiano”. Tolstói terminou com a grandeza eterna de um vice do tamanho de Ferenc Puskás da Hungria de 1954 ou de Johan Cruyff da Holanda de 1974. Deu adeus, a caminho do refúgio em Iasnaia Poliana, nas cercanias de Moscou, com uma frase lapidar na tristeza da derrota: “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”.

    À sua maneira, a felicidade de Púshkin durou pouco. Um jovem membro da guarda do czar Nicolau I, o barão Georges d’Anthès, exilado francês, apaixonou-se pela mulher do poeta, Natália Goncharova. Suspeitando ter sido traído, perturbado, apaixonado pela mulher como Dante por Beatriz, Púshkin chamou o barão para um duelo. Na tarde de 27 de janeiro de 1837, foram posicionados a vinte passos de distância um do outro e receberam suas pistolas. O escritor ainda estava acertando a mira quando D’Anthès atirou. A bala atravessou seu estômago e esmagou o osso sacro. Púshkin morreu em 29 de janeiro, campeoníssimo.

    Publicado em VEJA de 13 de junho de 2018, edição nº 2586

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