Na segunda edição dos Jogos Olímpicos da Era Moderna, realizada em 1900, as sete provas de natação — todas masculinas — foram disputadas em águas abertas. Ao perceber que o tempo dos atletas era espetacularmente bom, uma testemunha levantou a hipótese que, heureca!, explicaria o desempenho fora do normal. “Não seria culpa da correnteza?” O local dessa pequena anedota, o Rio Sena, que atravessa lindamente Paris, será uma vez mais protagonista olímpico.
A vitoriosa campanha francesa pelo direito de sediar os Jogos de 2024 pretende utilizar o curso de água que corta a cidade de leste a oeste para a realização de duas competições olímpicas. Não será a natação, como na virada do século XIX para o XX, mas provas “irmãs”: a maratona aquática de 10 quilômetros e a porção de nado do triatlo. Para isso, a prefeitura promete tornar próprio para banho o trecho do Sena que corre por seus principais cartões-postais — a ideia é que a largada da maratona aquática seja realizada na Ponte d’Iéna, bem em frente à Torre Eiffel. “Será o principal legado dos Jogos para a cidade”, disse a VEJA Céline Terrier-Laurens, coordenadora do ambicioso projeto de limpeza.
Nadar no Sena é proibido por lei desde 1923 (com breves hiatos nos últimos anos). Há um evidente impeditivo: a alta taxa de coliformes fecais, originária dos rejeitos que caem em suas águas. A entrada de esgoto não tratado piora quando chove intensamente na cidade. O plano final de revitalização do rio deve ser divulgado até outubro deste ano, e só sairá do papel ao custo de centenas de milhões de euros dos contribuintes franceses (veja alguns dos principais recursos de despoluição no quadro abaixo). Como se sabe, é comum que as cidades olímpicas prometam mundos e fundos e não cumpram o anunciado.
O Rio de Janeiro divulgou a notícia de que despoluiria a Baía de Guanabara para 2016 e foi uma vergonha internacional. Era apenas retórica, descobriu-se, sem muita surpresa, ou surpresa alguma. No caso de Paris, a preocupação com o Sena é antiga. Em 1988, o então prefeito da cidade, Jacques Chirac, que depois seria eleito presidente, soltou uma de suas clássicas boutades, as tiradas espirituosas que designam algo que se sabe ser difícil cumprir. “Em cinco anos nadarei no Sena”, anunciou. Nunca nadou. E, no entanto, convém restabelecer a verdade: ele não estava totalmente errado. Em trinta anos, subiu de duas para 24 a quantidade de espécies de peixes no curso urbano do Sena. Desde o início dos anos 2000 os níveis de coliformes fecais baixaram dez vezes.
A prefeitura de Paris já tem um pequeno balão de ensaio em operação desde o mês passado: a água que corre em um dos canais do Sena vem sendo usada para encher três piscinas instaladas em um lago na Zona Norte da capital. As altas temperaturas do verão europeu ajudaram a tornar a Baignade de La Villette um sucesso instantâneo — o ingresso no espaço é gratuito, mas limitado a 1 000 pessoas por dia. “Para conseguir dar um mergulho, é melhor chegar antes da 1 da tarde”, garante um dos fiscais da Baignade, aberta diariamente a partir das 9 horas até o cair do sol.
Paris segue os passos de outras cidades europeias banhadas por míticos rios, como Munique, na Alemanha, e Praga, na República Checa, que já possuem praias próprias para banho na margem de suas corredeiras. O exemplo mais espetacular de recuperação de um curso de água urbano foi o do Tâmisa, que cruza Londres e no fim dos anos 1950 era tido como “biologicamente morto”. Em 1959, uma reportagem do jornal The Guardian anunciava: “As águas do Tâmisa nada mais são que um esgoto a céu aberto”. Naquele tempo, o discurso dos governantes, ainda alinhado com a austeridade do pós-guerra, era que a limpeza era algo desnecessário, um desperdício de dinheiro. “Rios são canais naturais para o descarte de lixo”, disse à época um membro da Câmara dos Lordes. “Ao receberem nossos dejetos, estamos dando-lhes utilidade.” A mudança na mentalidade só veio no fim da década seguinte. Desde então, cerca de 70 quilômetros de curso urbano do Tâmisa já foram totalmente despoluídos. Hoje, nadar no Tâmisa não apresenta riscos à saúde, mas a atividade é permitida somente com consentimento da autoridade portuária da cidade (embora existam grupos de contraventores que se arriscam entre os barcos). A fiscalização intensiva é também parte da solução: neste ano, a companhia de saneamento Thames Water recebeu uma duríssima multa — 80 milhões de reais, a mais alta já aplicada pelo governo inglês — justamente por não conter o vazamento de esgoto no rio.
Os exemplos de Paris e Londres levantam uma incômoda questão: por que, além da Baía de Guanabara, nunca se conseguiu limpar os dois rios que atravessam São Paulo, o Pinheiros e o Tietê, que no passado chegaram a abrir provas de remo e natação? “Não é um problema tecnológico”, diz João Carlos Gomes de Oliveira, presidente da DT Engenharia, empresa responsável pelo tratamento da água dos lagos do Parque Ibirapuera e do Piscinão de Ramos. “Faltam recursos públicos para tornar a despoluição da parte urbana de nossos rios uma prioridade.” Talvez porque a despoluição demore a aparecer — e a render votos.
Publicado em VEJA de 23 de agosto de 2017, edição nº 2544