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Viciados em telas

Cientistas atestam que a dependência de smartphones afeta a química do cérebro, levando ao desenvolvimento de transtornos como déficit de atenção

Por André Lopes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 17h25 - Publicado em 8 dez 2017, 06h00

Se você não estiver lendo esta reportagem no celular, uma pergunta: onde está ele agora? A questão fez com que o procurasse? Se respondeu “sim”, é provável que, nos próximos minutos, você não consiga se concentrar neste texto. Quando o aparelho fica fora de alcance, um sentimento de ansiedade costuma tomar conta do usuário, bastando porém tê-­lo em mãos para o alívio ressurgir. Se isso é comum no seu dia a dia, deve-se acender o sinal amarelo. De acordo com um estudo liderado por pesquisadores da Universidade de Seul, na Coreia do Sul, divulgado no último dia 30, a dependência de smartphones já pode ser, sim, chamada de vício. Isso porque seu uso excessivo produz alterações químicas no cérebro, com reações e síndrome de abstinência em moldes semelhantes ao que acontece com dependentes de drogas.

Viciados em telas
Rembrandt? – Estudantes parecem preferir a tecnologia à clássica pintura (Gijsbert van der Wal/Reprodução)

No trabalho sul-coreano, os cientistas usaram um tipo particular de ressonância magnética que analisa a composição química do cérebro para observar hábitos de dezenove adolescentes clinicamente diagnosticados como viciados em celular. Depois, compararam os resultados com os de grupos de jovens que usam o dispositivo mas não eram tidos como dependentes. No estudo também se levou em conta quanto o convívio com a tecnologia afetava o contato com familiares, a produtividade e a forma de lidar com emoções. Num resultado previsível, os adictos apresentaram maiores níveis de depressão, ansiedade, insônia e impulsividade. Mas novidade maior, mesmo, foi a descoberta de como a nomofobia — eis o termo que descreve a dependência de smartphones — afeta a química cerebral.

Os jovens dependentes apresentaram oscilações na presença dos ácidos gama-aminobutírico, glutamato e glutamina, todos ligados a dois neurotransmissores responsáveis pelo funcionamento da atividade cerebral. Quanto maior o nível de alteração deles, mais grave era o quadro de dependência. Pode-se ter uma sólida dimensão do problema quando se considera que, em países desenvolvidos, 92% dos adolescentes acessam a internet todos os dias, em geral por meio de telefones móveis. Um típico usuário costuma tocar mais de 2 600 vezes na tela do celular por dia.

Esse dispositivo pode dominar a atenção de jovens e crianças mesmo diante das maiores maravilhas do mundo real — a exemplo de obr­as-primas como A Ronda Noturna, que o holandês Rembrandt (1606-1669) pintou em homenagem aos civis que fiscalizavam as ruas de Amsterdã. Entre 2015 e 2016, viralizou na internet um meme no qual um grupo de estudantes virou as costas para o quadro clássico e ficou fascinado com outra tela — a do próprio celular. Depois que a imagem se espalhou, descobriu-se que o grupo, na verdade, realizava pesquisas ligadas a um trabalho escolar. Mas a cena acabou ficando como o emblema de uma realidade: a capacidade quase infinita dos smartphones de atrair a atenção juvenil mesmo quando os adolescentes estão diante de outras maravilhas do engenho humano.

Está na mente – Jovem chinês, considerado viciado no dispositivo, tem o cérebro analisado em uma clínica de Pequim
Está na mente – Jovem chinês, considerado viciado no dispositivo, tem o cérebro analisado em uma clínica de Pequim (Kim Kyung-Hoon/Reuters)
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O uso constante do aparelho prejudica especialmente os jovens, membros de uma geração que nasceu conectada, cuja mente e hábitos ainda estão em formação — podendo influir nos processos de aprendizagem. Adolescentes que usam o aparelho em excesso apresentam tendências maiores a desenvolver déficit de atenção, fobia social, depressão e compulsão para acessar redes sociais. No ano passado, pesquisadores da Universidade de Kaohsiung, em Taiwan, publicaram um trabalho no qual relacionaram a dependência com transtornos mentais. Pela análise do comportamento de 2 300 adolescentes, concluiu-se que 10% deles possuíam algum tipo de alteração cognitiva ligada à nomofobia.

Extremo – O inglês Danny Bowman: a selfie e a tentativa de suicídio
Extremo – O inglês Danny Bowman: a selfie e a tentativa de suicídio (//Reprodução)

Estudos como esse procuram confirmar uma suspeita deste século: será que a ascensão das redes sociais e dos smartphones tem relação direta com o aumento dos casos de depressão e ansiedade entre jovens? Ao longo da última década, o número de crianças e adolescentes americanos internados em hospitais por suspeita de quadros depressivos mais do que dobrou. Em paralelo, a taxa de suicídio entre os indivíduos da mesma geração também cresceu com igual intensidade. Suspeita-se que o isolamento proporcionado pelas novas tecnologias tenha influência no aumento dos índices. Nos Estados Unidos, o tempo médio que os jovens dedicam diariamente ao celular passou de uma hora e meia, em 2012, para duas horas e meia, no ano passado. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, órgão ligado à ONU, considera que a Inglaterra apresenta o cenário mais grave: um em cada três adolescentes já pode ser considerado viciado por ficar on-line mais de seis horas diariamente.

Como saber se um filho ultrapassou os limites? Uma das diferenças entre o uso saudável e a dependência está no nível de inquietação quando o dispositivo não está por perto. “Para os viciados, as manifestações emocionais decorrentes de não poder acessar o aparelho, como quando acaba a bateria, são semelhantes às apresentadas durante casos de abstinência de drogas como álcool. O indivíduo costuma exibir alterações como sudorese, ansiedade, irritabilidade e comportamento agressivo”, explica a psicóloga Sylvia van Enck, pesquisadora do Grupo de Dependências Tecnológicas da Universidade de São Paulo.

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Um caso extremo, e hoje referência para estudos, ocorreu em 2012. O inglês Danny Bowman, então com 16 anos, tentou se matar, segundo ele próprio, por não ter conseguido tirar uma “selfie perfeita”. O rapaz dedicava, à época, dez horas de seu dia em busca das melhores fotos de seu rosto. Durante esse período, ele abandonou a escola, perdeu peso e desfez amizades. A cura só veio com a abstinência forçada: Bowman passou por um duro tratamento que consistia em de­ixá-lo longe do smartphone.

No Brasil, existem clínicas, como o Instituto Delete, no Rio de Janeiro, que promovem esse tipo de tratamento. A iniciativa segue os passos de países como Estados Unidos, Inglaterra, Japão e China, as principais referências nesse campo de trabalho e onde a nomofobia é tratada como um problema de saúde pública. Na Califórnia, as clínicas especializadas no tratamento contra a nomofobia são cada vez mais populares. No Japão, o Ministério da Educação lançou um projeto nas escolas para oferecer psicoterapia a jovens que se sentem dependentes do celular. Um aviso, contudo, deve ser feito para todas as idades: é difícil ter noção, sozinho, de quando se está dependente dessas novas tecnologias. Os especialistas indicam uma forma de acender o alerta: note se o uso demasiado do smartphone está interferindo em sua produtividade no trabalho ou no tempo dedicado à família e aos amigos. Se isso estiver acontecendo, é um sinal de que, talvez, as coisas não estejam indo de modo satisfatório. Como em tudo na vida, também para o celular vale o conselho de ouro: use com moderação.

Com reportagem de Carla Monteiro


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O celular é posto à prova

liberado Em São Paulo, uso autorizado: celular na sala de aula
Liberado – Em São Paulo, uso autorizado: celular na sala de aula (Rivaldo Gomes/Folhapress)

Em 2016, a Universidade de Singapura realizou um estudo para avaliar se a inclusão de aparelhos tecnológicos na sala de aula ajudaria ou prejudicaria o desempenho dos estudantes. Os pesquisadores monitoraram o comportamento de cerca de 100 alunos, com idade entre 18 e 29 anos, quando estavam com e sem o smartphone dentro da classe. Aqueles que tiveram o celular removido apresentaram, em testes acadêmicos, notas 17% menores do que os que foram autorizados a portar o dispositivo.

A conclusão dos especialistas: os jovens, hoje, estão tão conectados que forçar um hábito diferente, como ficar off-line, deixa-os demasiadamente ansiosos, a ponto de afetar sua capacidade cognitiva. Como Singapura costuma figurar entre os líderes mundiais em educação, o que só aumenta a credibilidade do trabalho realizado no ano passado, talvez seja realmente positiva a decisão do Estado de São Paulo de liberar o uso de celulares nas salas das escolas públicas.

Os aparelhos estavam proibidos nos colégios paulistas desde 2007. Segundo o governo, decidiu-se reverter a ordem porque a aprendizagem “deve acompanhar o uso de novas tecnologias”. A medida adapta o ensino ao século XXI, tempo em que 95% dos adolescentes levam seus smartphones para a escola e 92% admitem trocar mensagens mesmo durante as aulas.

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Apenas dar aval às “novas tecnologias”, no entanto, pode ser uma má escolha. Uma pesquisa da London School of Economics, realizada com 130 000 estudantes, descobriu que o uso de celular sem monitoramento faz com que a nota dos jovens que recorrem ao gadget seja até 14% mais baixa. Outro estudo, desta vez da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, mostrou que a solução para modernizar o ensino, sem fazer com que professores disputem a atenção com os smartphones, pode ser o m­­eio-termo: permiti-los, mas com fiscalização. Uma sugestão é a criação de aplicativos que possibilitem o acesso só para estudar o conteúdo apresentado em classe, e nada mais. Assim, os jovens poderão usar o celular, tal como desejam, mas com objetivo apenas pedagógico.

 

Publicado em VEJA de 13 de dezembro de 2017, edição nº 2560

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