A queda de braço entre Jair Bolsonaro e João Doria em torno da suspensão dos testes da CoronaVac pela Anvisa foi acompanhada com preocupação pelos profissionais do órgão — cerca de 90% do efetivo total. O caso gerou mal-estar no país pela comemoração do presidente com o tropeço da pesquisa. Esse episódio ficou ainda pior quando se tornou evidente que a interrupção foi provocada pelo suicídio de um voluntário — ou seja, uma morte que não tinha nada a ver com o efeito do imunizante. Agora, dentro da Anvisa, as atenções estão voltadas para a indicação pelo presidente, no dia 12, do tenente-coronel Jorge Luiz Kormann para comandar uma das cinco diretorias da agência, sem ter currículo para o cargo e com um histórico de interações preocupantes nas redes sociais sobre a vacina chinesa. Ele foi escolhido para a Segunda Diretoria e deverá substituir a farmacêutica Alessandra Soares, que tem duas décadas de experiência no setor.
A origem da indicação do novo diretor é conhecida: ele é do grupo do ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello. No seu currículo, há um mestrado em ciências militares, especialização em política, estratégia e inteligência e até um prêmio de inovação no governo Lula. Na área da saúde, tem apenas uma passagem como assessor de gestão pelo hospital militar de Porto Alegre e o cargo de secretário executivo adjunto no Ministério da Saúde desde junho. Mas o que mais causa apreensão é o seu comportamento na internet, onde curtiu posts críticos à CoronaVac e à Organização Mundial da Saúde, contendo ironias contra Doria, chamado de “China Boy”, e ataques aos “charlatões da OMS” e sua “parceria com a ditadura chinesa”. “É uma falta de bom senso tremenda indicar um tenente-coronel que nem é da saúde. E o pior: que tem um pensamento terraplanista. É inaceitável”, diz o médico sanitarista Gonzalo Vecina, fundador da Anvisa e seu presidente de 1999 a 2003.
O episódio da paralisação dos testes da CoronaVac, decidida de forma apressada em uma reunião no começo da noite do último dia 9, e a indicação de Kormann acenderam uma luz amarela sobre a credibilidade de uma agência até aqui historicamente blindada contra o jogo político. Responsável por regular mais de 20% do PIB, o que inclui alimentos, medicamentos, cosméticos e agrotóxicos, ela foi criada em 1999. Além de zelar pela saúde pública, uma Anvisa independente é crucial para manter o bom fluxo de importações e exportações, porque a certificação de produtos é fundamental e sua validade depende da credibilidade de quem atesta.
Algumas regras foram criadas para evitar o aparelhamento político da agência, como a necessidade de sabatina e aprovação pelo Senado e a nomeação dos diretores em momentos diferentes e com mandato de três anos, passível de prorrogação. O então presidente Michel Temer, porém, demorou a fazer algumas nomeações e Bolsonaro acabou ganhando o direito de indicar todos os cinco diretores. Um deles é o chefe da Anvisa, o contra-almirante Antônio Barra Torres, que tem formação médica. Em março, ele acompanhou o presidente, ambos sem máscara, a um ato de caráter antidemocrático. Mas ele é bem-visto pelo corpo técnico da agência. Desde que assumiu, em julho de 2019, ele se posicionou contra o plantio da maconha para uso medicinal, o que agradou aos bolsonaristas, mas aprovou junto com outros diretores a venda de remédios à base de canabidiol, o que satisfez a comunidade científica. Também pesou o fato de rapidamente ter colocado ponto-final na crise sobre a CoronaVac. Convocado ao Congresso para falar sobre o caso, foi incisivo ao dizer que, “em relação à pergunta sobre interferência política, duas palavras: não há”.
Se a atitude da Anvisa no caso da CoronaVac ainda deixa dúvidas, apesar das palavras de Torres, é certo que nunca o órgão teve uma diretoria tão questionada. Outro nome indicado recentemente, Cristiane Rose Jourdan Gomes, que é médica, publicou textos nas redes sociais defendendo o uso da cloroquina contra a doença. Também fez circular posts atacando o STF, os movimentos de esquerda e a imprensa. Kormann fazia coisas parecidas. Em julho, compartilhou com servidores um vídeo em que o dono da Havan, o bolsonarista Luciano Hang, propunha um novo método estatístico para contar os mortos pela Covid.
Independentemente de a nomeação de Kormann prosperar ou não, o fato é que há uma inquietação na Anvisa sobre o risco de aparelhamento. “Temos a única agência do Terceiro Mundo que se reúne anualmente com as do Primeiro para definir padrões em pé de igualdade. Isso pode acabar”, alerta Vecina. Em meio à pandemia, há uma preocupação agora com o que pode acontecer no processo de análise da CoronaVac, a cargo hoje justamente da Segunda Diretoria, a mesma que ficará sob a responsabilidade de Karmann. A sabatina dele no Senado ainda não tem data definida para ocorrer. “A escolha desse cargo é prerrogativa do presidente”, afirma Eduardo Gomes (MDB-TO), líder do governo na Casa. Mas a oposição promete resistência. Tudo que o país não precisa é de novos capítulos da guerra em torno de uma vacina. Para isso não acontecer, é necessário garantir imunidade total na Anvisa contra o vírus da política.
Publicado em VEJA de 25 de novembro de 2020, edição nº 2714