A polêmica sobre a obrigatoriedade da vacina é inócua
O fundamental é montar uma rede confiável e bastante ágil de produção e distribuição das doses
Depois de ter transformado a aprovação e distribuição de uma vacina contra a Covid-19 em briga política contra o governador de São Paulo, João Doria, apenas porque o imunizante chinês, o CoronaVac, não lhe interessa — por vir da China e por hipoteticamente ajudar um adversário de urnas —, o presidente Jair Bolsonaro seguiu o fio. Na segunda-feira 26, ele retomou o assunto: “Não pode um juiz decidir se você vai tomar a vacina, isso não existe”. Reagia a uma afirmação do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, que admitira ver com bons olhos o tema chegar à Justiça. Bolsonaro ainda teve tempo de brincar, no dia em que o Brasil chegava ao patamar de 156 000 mortes em decorrência do novo coronavírus. Foi ao Twitter, postou uma foto ao lado de seu cão de estimação, e sublinhou: “Vacina obrigatória, só aqui no Faísca”. Foi troça sem graça, e convém ressaltar que Fux também não precisaria acelerar os passos, levando para o topo da cadeia do Judiciário uma decisão que talvez nem precise estar lá. Do ponto de vista ético, é plenamente aceitável que algumas boas cabeças defendam o direito individual e inalienável de qualquer pessoa dizer não a tudo o que é compulsório — até que, ao pôr na balança a vontade pessoal e o interesse coletivo, o bom senso decida pelo comunitário. Foi assim com a adoção da obrigatoriedade do uso do cinto de segurança e a ninguém, lembre-se, é dado o direito de fumar em locais fechados.
Se a discussão da vacina fosse levada a patamares de tal quilate, o dos direitos e deveres, ela seria muito interessante — mas, por ter nascido como peça de propaganda eleitoreira, é apenas desnecessária. A obrigatoriedade, a rigor, não está em jogo. Levantamento recente conduzido pelo Ibope mostrou que 75% dos adultos brasileiros tomariam a vacina contra a Covid-19 com certeza absoluta — 20% responderam que talvez tomem e apenas 5% disseram se recusar a levar as picadas. Os índices de aprovação já seriam suficientes para imunizar toda a população. Considera-se que, acima de 70% de cobertura, a imunidade de rebanho é conquistada.
Obrigatórias, sim, deveriam ser as campanhas de conscientização e, depois, de aplicação das doses. A logística é complexa, de modo a preservar as substâncias a temperaturas baixas — e, para não se deteriorarem, precisam chegar rapidamente a seus destinos. Nessa direção, a do zelo pelo cidadão, houve ao menos uma boa notícia: na quarta-feira 28, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizou a importação da matéria-prima para a fabricação da CoronaVac. A decisão atendeu a uma solicitação do Instituto Butantan. Foi um adequado gesto de bandeira branca entre os governos de São Paulo e o federal, na contramão do vírus ideológico que havia contaminado o ambiente.
É inútil, portanto, entrar no campo da legalidade — até porque, se fosse esse o caminho, seria bom lembrar da norma que o próprio Bolsonaro assinou em fevereiro deste ano, quando o vírus começava a aparecer, ao prever medidas imperiosas de saúde a ser tomadas pelo estados, incluindo a determinação de exames médicos, isolamento e… vacinas. “Ainda que a lei não tivesse jamais existido, não há o que questionar, o aval à aplicação forçosa é amparado pela Constituição brasileira”, diz Thiago Pellegrini Valverde, professor de direito da Universidade São Judas. Ressalve-se, ainda, que a vacinação obrigatória não é novidade. A BCG, contra a tuberculose, e a DTP, contra o tétano, a difteria, a coqueluche e a pólio, por exemplo, são impostas. Sob uma fiscalização firme, os pais que se recusam a imunizar seus filhos estão sujeitos a multa de até vinte salários mínimos — e não seria errado dizer que o hábito, mais do que a mão forte do Estado, é que fez toda vacinação no Brasil ser plenamente aceita e celebrada.
O célebre episódio da Revolta da Vacina, de 1904, no Rio, quando um motim popular estourou em decorrência da obrigatoriedade da imunização contra a varíola, é incompatível com a sociedade moderna. Desde os anos 1950, com o desenvolvimento da vacina contra a poliomielite, que livrou milhares de pessoas da morte e de viver no horrendo “tanque de aço”, aparelho semelhante a um cofre para auxiliar na respiração, os brasileiros saúdam as vacinas. Não é diferente agora — seja a vinda da China, como a CoronaVac, seja importada da Europa, como a substância de Oxford em parceria com a inglesa AstraZeneca, aqui testada pela Fiocruz. O Brasil não pode andar para trás.
Publicado em VEJA de 4 de novembro de 2020, edição nº 2711