Na recente história da relação da humanidade com as doenças, a pandemia de Covid-19 é um fenômeno sem precedentes — mesmo com quase todo o planeta fechado em casa para se proteger do vírus, houve 5 milhões de mortes em dois anos. Com a chegada das vacinas, o pesadelo deu espaço a esperança e mortalidade reduzida. Um bom exercício para medir o tamanho do dramático desafio é olhar para a gênese de outro vírus mortal, o HIV, causador da aids, há exatos quarenta anos. O alvo preferencial na infância do HIV foram os homossexuais, atalho inaceitável de preconceito e condenações contra as pessoas que vivem com HIV e que, lá no início, se chamava absurdamente de “peste gay”. A doença não dava trégua: 51% dos que a contraíam morriam em um ano e 85% em até cinco.
Com menos recursos, e sem que até agora tenha sido descoberta uma vacina, a ciência batalhou muito até encontrar uma fórmula, composta de diversos comprimidos antirretrovirais, capaz de estancar ou ao menos dificultar a replicação do vírus no organismo infectado. O achado foi um choque de otimismo, que não demorou a se alastrar. No Brasil, o jogo virou há trinta anos, em 1991, quando o Ministério da Saúde iniciou a distribuição gratuita do coquetel anti-aids — a data memorável em que a sentença de morte começou a se tornar condição crônica controlável. “Hoje, a grande questão não é mais morrer em decorrência da doença, mas achar a melhor forma de viver com o vírus”, diz Carmita Abdo, coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade da USP.
A aids matou até o presente 34,7 milhões de pessoas no mundo — 350 000 no Brasil —, mas a curva de óbitos despencou depois da introdução do coquetel (veja nos gráficos acima), apesar dos efeitos tóxicos das primeiras medicações, de náuseas a sérias alterações hematológicas. “Quando recebi o resultado do teste, meu mundo desabou e estava certo de que não resistiria aos meses seguintes”, lembra o bancário Beto Volpe, 60 anos e soropositivo desde os 28. Ele contraiu o vírus em encontros desprotegidos quando vivia em Santos, epicentro nacional da doença durante décadas. Seguindo os primeiros protocolos para a distribuição dos antirretrovirais, o SUS, no começo, só atendia pessoas que apresentassem queda abissal das células de defesa T CD4+, parâmetro para medir a multiplicação do vírus. A partir de 2013, porém, todos os diagnosticados com HIV passaram a ter acesso imediato ao tratamento. Volpe começou a tomar o coquetel quando apresentou os sintomas iniciais de aids, em 1996, sete anos depois de ser infectado. O pioneirismo teve seu preço: 25 cirurgias, algumas pneumonias, três neurotoxoplasmoses, dois cânceres e uma infecção que o fez perder 30 quilos. Sobreviveu.
Entre as cerca de 950 000 pessoas com HIV atualmente no Brasil, 81% fazem uso regular da terapia antirretroviral, segundo o Boletim Epidemiológico HIV/aids, divulgado em 1º de dezembro, Dia Mundial de Combate à Aids. Ao longo do tempo, os medicamentos — o AZT foi o precursor — aumentaram exponencialmente a expectativa de vida dos usuários e, à medida que foram aprimorados, tiveram os efeitos colaterais reduzidos. “Meu primeiro marido, um homem de 1,85 metro, morreu em seis meses com 45 quilos. Em 1990, eu sabia de cor o preço dos caixões, de tanto enterrar amigos”, conta o curador de arte paulistano Luís Baron, 60 anos, portador do vírus há 34. Baron foi um dos primeiros a ter acesso ao coquetel — tomava 24 pílulas por dia e teve de parar de trabalhar por quatro anos devido ao mal-estar constante. “Por mais árduo que fosse, nunca cogitei interromper porque era o que me mantinha vivo”, lembra. Atualmente o Ministério da Saúde distribui dezenove antirretrovirais. A maior parte dos pacientes ingere de duas a três cápsulas diárias e a Anvisa acaba de aprovar um novo tratamento que prevê um único comprimido.
Diversas vacinas contra a aids estão sendo testadas no momento, inclusive no Brasil, que faz parte de um estudo em oito países capitaneado pelos Estados Unidos. Além disso, o SUS oferece dois tratamentos para evitar contágio pelo HIV, as profilaxias PrEP — medicamento de uso contínuo indicado para profissionais do sexo e casais com sorologias diferentes — e a PEP, receitada a vítima de violência sexual ou a quem teve relação desprotegida. O risco de infecção também caiu drasticamente desde a introdução do coquetel: no prazo de três a seis meses, a carga viral baixa tanto que fica indetectável. “A realidade dos infectados mudou radicalmente e sua perspectiva de vida é igual à de qualquer pessoa”, ressalta Valdiléa Veloso, diretora do Instituto Nacional de Infectologia da Fiocruz. Mesmo assim, os sintomas de intolerância resistem. A psicóloga carioca Rafaela Queiroz, 30 anos, foi infectada ao nascer, perdeu o pai e a mãe para a doença, toma o coquetel desde os 5 anos e leva vida normal. “Nunca desenvolvi aids, mas até hoje há quem ache que vai se infectar respirando o mesmo ar que eu”, diz.
Insista-se: a pecha de “peste gay”, que nascera estúpida e agressiva, já não faz sentido algum. Passados tantos anos, o perfil dos infectados é diferente. “Não existe mais grupo de risco”, diz Alberto Chebabo, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia. “Todos os que têm vida sexual ativa estão expostos. Por isso, as campanhas educativas continuam sendo essenciais.” Integrante da primeira leva de pacientes tratados com o coquetel, a palestrante amazonense Vanessa Campos, 49 anos, 31 deles vivendo com HIV, usa a própria história para sensibilizar novas gerações. Vanessa foi infectada pelo primeiro namorado e hoje é mãe de três filhos, de outro relacionamento, todos soronegativos. “Mesmo com vários sintomas de aids, os médicos demoraram a me prescrever o teste porque eu era heterossexual e tinha tido um único parceiro”, lembra. A faixa etária dos 15 aos 29 anos continua sendo a que mais se infecta com HIV no país, representando 44% dos casos. A melhor forma de combater a aids é, portanto, como sempre foi, não baixar a guarda. Vale também para a Covid-19.
Publicado em VEJA de 8 de dezembro de 2021, edição nº 2767