Uma revolução na indústria de alimentos
De refrigerantes com frutas a iogurtes orgânicos e sucos com fabricação sustentável — como os fabricantes se adaptam ao novo consumidor
Antes da Queda da Bastilha houve outra revolução francesa, à mesa, no século XVII — os pratos inundados de especiarias, muitas vezes intragáveis, à base de carnes de caça, deram lugar a uma sinfonia de cremes gordurosos, manteiga, ovos, geleias, compotas e musses, para “comer sem que fosse necessário o espetáculo áspero e prosaico da mastigação”, como se dizia na época. Era um festival para o palato, um sonoro non à teoria dos quatro humores de Hipócrates, que vigorava até então, e para quem a saúde era resultado de rigoroso e insosso equilíbrio entre fleuma, sangue, bílis amarela e bílis negra, regidos pela alimentação. Naqueles tempos centrífugos, um renomado chef britânico, Robert May, cobrou de Luís XIV (1638-1715), em um minucioso livreto, a exagerada preferência gaulesa “pelos molhos e não pelas dietas”. May lamentava o suposto desequilíbrio imposto por uma culinária que, a partir daí, rezaria pela cartilha do gosto, e o corpo que se virasse.
Passados quatro séculos, a escória virou povo, Maria Antonieta perdeu a cabeça, e May finalmente começa a ser ouvido. Vive-se, hoje, uma revolução do paladar, na definição da endocrinologista Claudia Cozer Kalil, do Hospital Sírio-Libanês, de São Paulo — revolução comandada, e não há aí exagero algum, muito mais pela dieta do que pelos molhos. Ou, em termos mais precisos: o império hoje é o dos cuidados com a saúde, locomotiva de fenomenais — e aparentemente definitivas — transformações na indústria de alimentos. A sociedade exige uma cozinha mais equilibrada, mais zelosa, menos adocicada, como se milhões, bilhões de mestres-cucas ingleses estivessem erguendo a voz contra uma antiga escola de forno e fogão (embora, ressalve-se, nem mesmo o mais empedernido dos jacobinos da atualidade ouse abandonar um bom tempero). Há um modo econômico de medir esse movimento, incontestável, puxado pela geração dos millennials, nascida entre 1980 e 1995, e que influencia hábitos de pais e avós.
Pesquisa mundial conduzida pela Deloitte, empresa especializada em consultorias e auditorias, mostra que nove em cada dez companhias de alimentação introduziram em 2017 ao menos um produto formulado ou reformulado para atender o consumidor em busca de um cotidiano mais são. Outro levantamento, do instituto Euromonitor, identificou globalmente uma expansão anual de 1,8% do mercado de comida industrializada saudável, ante 1,5% do lote tradicional, banhado de conservantes e similares. No Brasil o naco sadio não para de crescer — chegou, em 2018, a 10,7% do total de vendas do setor, segundo a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos. O que as cifras revelam com algum distanciamento é facilmente percebido no cotidiano dos supermercados. Os produtos com baixo teor de açúcar, sal e gorduras, sem lactose, sem glúten, provenientes de fazendas orgânicas e linhas de montagem sustentáveis etc., que antes ficavam escondidos, quase invisíveis, em cantos laterais dos últimos corredores, agora brotam no centro, próximo aos caixas, em posições nobres. Nas lojas do Grupo Pão de Açúcar, por exemplo, o espaço para orgânicos quadruplicou nos últimos três anos.
Gigantes da indústria entraram nesse novo mercado com valentia. Em 2017, a Coca-Cola decidiu reduzir em 25% a quantidade de açúcar adicionado aos refrigerantes da marca Fanta, nos sabores uva e laranja (veja a galeria de fotos). Criou uma versão de suco Del Valle sem açúcar, com mais fruta e em embalagem transparente, que permite usar uma quantidade menor de resina e, portanto, impactar menos agressivamente o meio ambiente — imposição natural dos novíssimos compradores. “O setor de sustentabilidade nas empresas deixou de ser o departamento do cantinho para participar dos processos de negócio”, diz Andrea Mota, diretora de sustentabilidade da Coca-Cola. A Danone e a Nestlé investiram pesado no setor de orgânicos e iogurtes com alto teor de proteína, os prediletos dos praticantes de esporte. “O mercado agora são vários, há várias tribos”, diz André Rapoport, diretor de sustentabilidade da Danone. “Não existe mais o consumo de massa.” Jorge Paulo Lemann, fundador da gestora de investimentos 3G Capital, que tem em sua carteira a lendária Kraft Heinz, fabricante do ketchup Heinz, em sociedade com o americano Warren Buffett, teve a grandeza, e o olhar de quem sabe das coisas, de admitir um erro — transformando-o em novo atalho. “O sonho da marca grande acabou”, disse ele para um grupo de executivos em São Paulo. É preciso, agora, pensar também nos nichos. A Kraft Heinz não quis acreditar nas rapidíssimas transformações, no gosto movido a saúde. Apostou na clássica trajetória de seu produto, naquela montanha do apetitoso molho de tomate, e perdeu o bonde. Agora tem de se reinventar. “Precisamos rejuvenescer alguns produtos”, diz Miguel Patricio, presidente da empresa.
Em rápida transformação, os novos rumos da alimentação atraíram megainvestidores de outras áreas, como o apresentador de televisão e empresário Luciano Huck; Oskar Metsavaht, dono da grife Osklen; e o empresário Eduardo Eugênio Gouvêa Vieira. Os três são sócios da marca de sucos e snacks Greenpeople, criada em 2014. Os produtos são 100% naturais (uma embalagem de 350 mililitros corresponde a cerca de 1,5 quilo de frutas e vegetais prensados) e preparados de forma sustentável (prioriza-se o uso de ingredientes provenientes da agricultura familiar). Seis meses depois da abertura da fábrica, o faturamento dobrou. Em 2018, a receita bruta foi de 21 milhões de reais. A estimativa é que chegue a 40 milhões de reais neste ano e salte para 70 milhões de reais em 2020. “A busca por alimentos saudáveis é irreversível”, disse a VEJA Luciano Huck. “Eu mesmo mudei meus hábitos ao longo dos anos. A Angélica, que é a guardiã da dispensa e da geladeira lá em casa, quer diminuir a quantidade de açúcar refinado na alimentação da família e trazer produtos naturais e orgânicos para a mesa.”
O desafio, ressalta Huck, é oferecer opções por um preço mais acessível, ao alcance de todos. O controle na elaboração de um produto orgânico, que vai do cuidado com o adubo utilizado nas plantas ao pasto que alimenta os animais, faz uma iguaria dessa categoria custar pelo menos 20% a mais em relação às regulares. Mas é justamente o zelo com toda a cadeia de produção um dos grandes motivos de atração para o consumidor. Diz Oskar Metsavaht: “O alimento saudável dá dinheiro porque deflagra novas experiências, mexe com a vida e a cultura das pessoas”. Somos, enfim, o que comemos — e nunca, como hoje, a sociedade impôs tanta reconstrução do que levamos à boca. Foi sempre assim, na história da alimentação, mas a roda gira mais veloz. Comida, enfim, é moeda para entender a história econômica e social da civilização. As primeiras conservas de longa duração foram criadas para alimentar soldados franceses nos tempos de Napoleão. O imperador ofereceu um prêmio a quem inventasse um processo de preservação de mantimentos por longos períodos. O vencedor demonstrou que alimentos fervidos em potes de vidro hermeticamente fechados mantinham-se ao longo de meses. As conservas pioneiras foram feitas em garrafas de champanhe. No início do século XX, a chegada das geladeiras às casas ampliou as opções alimentares (veja o quadro). Nos anos 1950, as várias formas de empacotamento e apresentação dos alimentos permitiram o planejamento de um cardápio inteiro à base de produtos industrializados — enlatados, desidratados, congelados. Até que as preocupações com a saúde, marco de nosso tempo, fizeram tudo mudar.
Não é simples, como em toda grande guinada comportamental. E há um vilão: o açúcar. Nos anos 1960, a Associação da Indústria de Açúcar dos Estados Unidos chegou a lançar campanhas exibindo o produto como um item saudável e até regulador de apetite. Já eram mais do que conhecidos os efeitos nocivos para o organismo — os primeiros estudos relacionando o consumo do ingrediente a problemas cardíacos datam da década de 20. Já não há espaço para desinformação, e, no Brasil, o afastamento de antigos hábitos será ainda mais difícil. O açúcar definiu a identidade nacional. Nosso paladar é um dos mais avessos aos sabores amargos. No Brasil, uma barra de chocolate, para ser considerada chocolate, deve ter ao menos 25% de cacau em sua composição. É pouco. O porcentual mínimo em outros países gira em torno de 33%. Quanto menos cacau, mais doce é o chocolate. A Organização Mundial da Saúde libera o consumo diário individual de 25 gramas de açúcar, o equivalente a seis colheres de chá. A média brasileira: 80 gramas, três vezes mais. Há nove meses, o Ministério da Saúde fez um acordo com a indústria para a redução de açúcar na produção de alimentos. O objetivo é retirar do mercado, de forma gradual, até 2022, 144 000 toneladas de açúcar em algumas categorias, como bebidas, biscoitos, bolos e lácteos. Um pacto semelhante, ocorrido em 2011 em relação ao sal, conseguiu retirar 17 000 toneladas do composto de produtos industrializados. O acordo foi renovado em 2017, agora com a meta de eliminar mais 28 500 toneladas de sal até 2020.
São decisões que, há algumas décadas, soariam como anátemas, mas que em plena revolução do paladar fazem sentido. Quem haveria de imaginar, até muito recentemente, que hambúrgueres desenvolvidos a partir de vegetais, os chamados plant-based, na expressão em inglês, seriam recebidos com felicidade até pelos mais apaixonados amantes de fast-food?
Assim é, e só chegamos a esse ponto porque a tecnologia de alimentos, pressionada pela procura do saudável, soube desenvolver mecanismos científicos que concedem gosto bom ao que se pretende do bem, e que antes, outro dia mesmo, não tinha graça alguma para a gustação. Não há exemplo mais fascinante do que a americana Impossible Foods, a dos hambúrgueres veganos, que desenvolveu uma substância similar à hemoglobina presente no sangue dos animais para dar sabor à carne que não é carne. Bem-vindo aos humores do século XXI — em que não basta ser gostoso, mas também não basta só fazer bem.
Publicado em VEJA de 4 de setembro de 2019, edição nº 2650