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Artigo: o que é preciso mudar no combate à pandemia

"Devemos adaptar descobertas científicas a políticas públicas", diz Pércio de Souza, fundador do Instituto Estáter

Por Pércio de Souza*
Atualizado em 4 jun 2024, 14h17 - Publicado em 12 jun 2020, 06h00

O combate à pandemia causada pelo coronavírus vai entrar para a história como um dos grandes fracassos da sociedade moderna. Quando olharmos para trás para enxergar este período, veremos o enfrentamento de outras duas doenças tão graves quanto a infecção: a irracionalidade que vem da psicologia de massas das mídias sociais e o vácuo de lideranças que dominou as ações no planeta, com raras exceções. A radicalização que vem de uma e a politização que vem de outra impediram o enfrentamento eficaz da Covid-19. Faltaram análises pragmáticas, ações que permitissem o contraditório, provas e contraprovas, teses e antíteses. Com um outro tipo de abordagem, milhares de pessoas que estão morrendo em casa ou chegando virtualmente mortos aos hospitais poderiam sobreviver à doença. No Brasil, não é diferente, exceto por parte da sociedade civil em campanhas de solidariedade para conter a fome e iniciativas heroicas dos profissionais de saúde e líderes das comunidades vulneráveis.

Falta uma aliança entre os governos federal, estaduais e municipais que mobilize esforços para, de forma coordenada, suprir as carências do sistema de saúde. Falta a elaboração de uma estratégia consolidada, considerando o aspecto continental do país e suas diferenças regionais. Falta um plano de ação que ataque a carência na infraestrutura, com investimento em pesquisa para adaptação das políticas públicas aos achados científicos mais recentes, uma vez que a literatura está sendo escrita “ao vivo”, à medida que a pandemia se desenrola. Mas o que, de fato, angustia quem acompanha a evolução da pandemia no front é que, a rigor, medidas simples poderiam ter impacto significativo no destino de muitas pessoas. Desde abril o Instituto Estáter identificou uma tendência alarmante e que teimava em ser ignorada pelo noticiário e por autoridades. Interpretando dados da Itália e dos EUA, constatamos que um número superior a 70% das mortes aconteceu sem que os pacientes passassem pelas UTIs. Com ajuda de Ben-Hur Ferraz Neto, cirurgião do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, acessamos hospitais e médicos nos EUA, Reino Unido e Itália. Para nossa surpresa, nenhum deles conseguiu explicar esse fenômeno. Levamos os dados para um grupo de especialistas que apoia o Instituto. Esper Kallás, infectologista do Hospital das Clínicas, e Carlos Carvalho, pneumologista do Incor, identificaram vários pacientes que chegavam ao hospital com o nível de saturação de oxigênio muito baixo. Alguns morriam na ambulância enquanto outros chegavam colapsados, à beira da morte. Estes, ou morriam rapidamente ou levavam de duas a três semanas para se recuperar nas UTIs. A hipóxia silenciosa (mecanismo que leva à perda do nível de saturação do oxigênio sem que o paciente perceba) matou mais gente nos asilos, em casa ou a caminho do hospital, do que aqueles internados nas UTIs. Isso porque, de acordo com o consenso de protocolo, os infectados só deveriam procurar um hospital no caso de falta de ar. Hoje vemos que foi um erro.

“A norma atual faz com que pacientes sejam internados diretamente nas UTIs, enquanto as enfermarias estão ociosas”

O Sars-CoV-2, vírus que causa a Covid-19, atua como uma bomba-relógio. Os especialistas constataram que a perda da saturação de oxigênio começa entre o quinto e o sétimo dia, período em que o paciente ainda está acamado e prostrado e não percebe essa queda na oximetria. Quando sente falta de ar, em muitos casos é tarde demais. A saída para evitar essas mortes trágicas desassistidas é acompanhar a saturação de oxigênio e ir ao hospital no primeiro indício de queda abaixo do limite. Mas se os hospitais estão lotados, qual a alternativa? Há aqui o paradoxo das hospitalizações. O protocolo atual faz com que uma parcela relevante dos pacientes seja internada diretamente nas UTIs. Enquanto isso, as enfermarias estão com ociosidade entre 35% e 45%. Por outro lado, a experiência tem mostrado que pacientes com a perda de oximetria constatada precocemente podem ser submetidos a métodos alternativos de oxigenação simples, como cateteres e outros que serão ministrados nos leitos comuns. Parte deles pode se recuperar depois de alguns dias com esse tratamento. O outro estágio é a ventilação mecânica não invasiva. Somente aqueles que não se recuperarem seriam submetidos à intubação — a experiência das equipes de frente também tem mostrado uma recuperação mais rápida desses pacientes do que dos submetidos à intubação em estágio avançado de baixa saturação. A conclusão é que o acompanhamento da oximetria, principalmente de pessoas do grupo de risco, pode permitir um alívio no uso de UTIs, além de salvar vidas.

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Há iniciativas sendo testadas para criar controle do nível de oxigênio nas populações mais vulneráveis. Uma delas, em Paraisópolis, conta com oxímetros conectados a um aplicativo no celular que registra na nuvem o nível de saturação do oxigênio e dispara sinal de alerta quando atinge níveis de atenção. Outra, desenvolvida por uma ONG, treina motociclistas, paramentados com EPIs, para medir a oximetria de moradores do grupo de risco que não possuem condições de ter o aparelho. O acompanhamento é feito por mapas de controles e por aplicativos de telemedicina. A sociedade e as lideranças comunitárias têm se organizado, porém é necessário ampliar a divulgação para conscientizar grande parte da população mais vulnerável. O combate da Covid-19 é um fracasso global. Mas ainda há tempo para salvar muitas vidas. Para isso, o protocolo precisa ser ajustado.

* Pércio de Souza, engenheiro, é um dos fundadores do Instituto Estáter

Publicado em VEJA de 17 de junho de 2020, edição nº 2691

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