No século XIX, ao viajar pelo Brasil, o botânico francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853) cunhou uma frase provocativa: “Ou o Brasil acaba com as saúvas ou as saúvas acabam com o Brasil”. Em 1928, ao beber da máxima original, o escritor Mário de Andrade (1893-1945) pôs na boca de Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, um dístico irônico, retrato de uma postura atávica do país: “Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são”. Passados dois séculos da percepção de Saint-Hilaire, quase 100 anos da ironia de Mário, é triste perceber que pouca coisa mudou no zelo para com o bem-estar da população. É o que se extrai do surto de dengue que se alastra por diversos estados, em um Carnaval que tem tudo para ser dominado pelo Aedes aegypti, o mosquito vetor da contaminação. A prefeitura do Rio de Janeiro decretou estado de emergência depois de salto inaceitável de casos da doença — mais de 10 000 apenas em janeiro, o maior índice desde 1974, quando a contagem começou a ser feita. No Distrito Federal são mais de 46 000 registros, estatística epidêmica que forçou o governo a instalar um hospital de campanha, como os que foram vistos no período mais crítico da pandemia de Covid-19, apto a receber 600 pessoas por dia. Em São Paulo, a multiplicação acelerada de episódios da doença também preocupa.
O constrangedor — e inaceitável — é saber que em 1958 a Organização Pan-Americana de Saúde chegou a anunciar a erradicação do Aedes. Ele voltaria, contudo, nos anos 1970 e 1980 — em 1986, Rio de Janeiro, Ceará e Alagoas foram severamente afetados, assunto de reportagens de VEJA. Sucessivas campanhas de conscientização e o cuidado com a água parada em buracos e pneus, resultado de urbanização descontrolada e miséria, ajudaram a reduzir, nas últimas décadas, a toada de internações. Agora, porém, deu-se incômodo avanço. E o que parecia resolvido, página virada da história, reapareceu com vigor. A taxa de letalidade da dengue costuma ser baixa, no entanto, mais de quarenta pessoas já morreram nesta estação. Os sintomas mais comuns são perda de peso, náusea, vômitos e dores abdominais, que, muitas vezes, exigem internação. Há riscos severos que não podem ser desdenhados.
O dado positivo, no avesso da postura da gestão de Jair Bolsonaro durante a Covid-19, transformada em “gripezinha”, é que existe uma boa resposta das autoridades. O prefeito do Rio, Eduardo Paes, agiu com rapidez e antes da folia lançou o alerta. Os serviços de orientação têm crescido, e eles são cruciais para um pedaço do mundo de clima quente e cidadãos empobrecidos. O Aedes aegypti, aliás, foi pauta da conversa do presidente Lula e da ministra da Saúde, Nísia Trindade, com o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, Tedros Adhanom. Mal saído da pandemia respiratória, que a rigor não terminou (e convém cautela na festa), o Brasil não pode mergulhar em nova crise sanitária, por vários motivos — pelas famílias, pelo Erário e porque soa inadmissível o triste passo atrás.
Publicado em VEJA de 9 de fevereiro de 2024, edição nº 2879