Era preciso haver um emblema da extraordinária e apaixonada corrida da ciência por uma vacina contra Covid-19, que até a quinta-feira 10 matara mais de 1,5 milhão de pessoas em todo o mundo — quase 180 000 somente no Brasil. E o tão desejado símbolo despontou às 6h31 da manhã, horário local, na cidade de Coventry, centro da Inglaterra, na figura de uma senhora de 90 anos, funcionária aposentada de uma joalheria. Margaret Keenan parecia tranquila quando a enfermeira May Parsons se aproximou com a seringa, ergueu a manga esquerda da camiseta de algodão da paciente e nela injetou a primeiríssima dose do imunizante da americana Pfizer desenvolvido em parceria com a alemã BioNtech. Foi a aplicação inicial das 800 000 previstas no Reino Unido, até o fim de dezembro. Margaret vestia uma camisa de azul luminoso com o desenho de um boneco de neve debaixo de um desejo: “Merry Christmas”. Ela pagou 8 libras pela peça, o equivalente a 55 reais, dinheiro destinado a uma campanha de solidariedade contra os danos econômicos da atual crise sanitária.
“Feliz Natal” é o que se espera a partir da histórica cena, desde já um dos mais celebrados retratos da esperança de nosso tempo, cujo sinônimo é ciência, no avesso da desesperança e do ridículo negacionismo. Margaret sorriu e definiu com voz frágil o que lhe acontecera: “Isso significa que posso finalmente esperar passar um tempo com minha família e amigos no Ano-Novo, depois de estar sozinha na maior parte de 2020”.
Perto de onde nasceu a pioneira, na cidadezinha medieval de Enniskillen, no coração da Irlanda do Norte, estudou o dramaturgo Samuel Beckett, prêmio Nobel de Literatura em 1969, autor de um clássico incontornável do teatro, Esperando Godot. O Godot que tanto se espera pode ser um messias, um Deus, uma ideia, algo ou alguém que nunca aparece. Um socorro, uma salvação — uma vacina, quem sabe, e calhou de no caso do imunizante da Pfizer e BioNtech a espera ter sido curta, bem curta. Entre 5 de janeiro — quando um grupo de cientistas de Xangai identificou a estrutura molecular do vírus que grassava em Wuhan, batizando-o de Sars-CoV-2 — e a terça-feira, 8 de dezembro, se passaram apenas onze meses. Pareceu uma eternidade, neste 2020 interminável, mas não. No caso da luta contra a poliomielite, a título de comparação, entre um momento e outro, foram 47 anos de distância (veja o quadro da pág. 60). Talvez por isso, pelo tempo transcorrido, é que as primeiras doses aplicadas pelo biólogo americano Jonas Salk, em 1955, tenham gerado tanta comoção, e agora remetem à agulhada em Coventry. “Se posso injetar isso aos 90 anos, qualquer um pode”, disse Margaret Keenan. “Sinto-me privilegiada por ser a primeira pessoa imunizada contra a Covid-19.”
São palavras que ecoam a de uma mãe, Joanna H. Shurbet, que em 13 de abril de 1955, no dia seguinte ao do anúncio oficial pelo governo dos Estados Unidos da aprovação de uma vacina contra a pólio, escreveu para Salk, com letra delicada e tom comovido. “A bênção de milhões de mães para as quais sua descoberta significa um meio de libertá-las do mais terrível dos medos não é menor entre as várias honras que um mundo agradecido deve dirigir ao senhor. Quando me dou conta de que minha filha e outro filho que terei em breve nunca mais sofrerão de pólio, sinto-me tão grata que não sei como me expressar ao senhor e a todos que tornaram isso possível”.
Não há, em relação à Covid-19 um Salk, um nome em torno do qual, como ímã, tenha girado toda a engrenagem. No século XXI, o da internet e do conhecimento, tudo é colaborativo — eis uma das belezas de nosso tempo, atalho para a velocidade com que foi possível anunciar um imunizante contra a complexa doença respiratória que empurrou a civilização ao que chamamos de “novo normal”. Diz o geneticista Salmo Raskin, membro da Sociedade Brasileira de Genética Médica e Genômica: “Nunca na história da ciência houve tanto esforço conjunto de instituições tão decisivas para a criação de uma vacina”. Verdade. Com um investimento global de 20 bilhões de dólares, 52 imunizantes estão neste momento em fase de testes em humanos e 162 na etapa laboratorial. Três deles chegaram à etapa final, além da vacina da Pfizer, com eficácia de 90% ou mais, taxa de sucesso altíssima para qualquer tipo de vacina — os outros dois são os fabricados pelo laboratório americano Moderna e o britânico AstraZeneca, em colaboração com a Universidade de Oxford. A probabilidade de ao menos um deles passar a ser usado em larga escala na Europa e nos Estados Unidos ainda neste ano é alta. Há ainda a Sputnik V, do Instituto Gamaleya, de Moscou, mas ela é cercada de controvérsias. No início deste mês, a população russa começou a ser vacinada em massa com o imunizante. O grande entrave é estar sendo utilizado antes do fim dos testes necessários. O imunizante da Pfizer, que precisa ser armazenado a temperaturas de menos 70 graus, é, até agora, o produto com o maior número de chancelas. O aval vitorioso veio nesta semana, da FDA. A rigorosa agência regulatória americana publicou os resultados de uma análise criteriosa e detalhada que ratifica a eficácia de 95%, além de sua segurança, sem danos colaterais relevantes. A vacina funcionou bem independentemente da raça, peso ou idade do voluntário.
Inédita, a agilidade das autoridades sanitárias tem sido peça essencial na batalha contra o vírus. Atavicamente lentos, os burocratas apertaram o passo para avaliar os dados oferecidos pelos laboratórios, aprovando estudos em prazos curtíssimos — o que não significa de forma alguma uma postura de desleixo, mas de forças-tarefa e protocolos organizados e inovadores. No Brasil, por exemplo, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, aprovou há menos de um mês medidas para acelerar o registro de vacinas contra a Covid-19 no país. A norma autoriza as empresas a enviar os dados técnicos sobre os testes de forma contínua — e não ter de reunir todos os documentos para apresentá-los de uma vez só, como normalmente ocorre (acompanhe as negociações e trapalhadas do governo brasileiro na pág. 62). Na quarta-feira 9, o Canadá autorizou o uso da vacina da Pfizer e, até o fechamento desta edição, os Estados Unidos estavam prestes a validá-la. O governo britânico, porém, foi o que se mostrou mais ágil. O Reino Unido reservou cerca de 300 milhões de doses de vacinas pesquisadas por seis fabricantes. Caso todas se comprovem eficientes, o número já supera o total da população, mesmo que sejam necessárias duas doses.
As vacinas são a mais preciosa ferramenta de saúde pública mundial, uma conquista da humanidade. As três dezenas de imunizantes hoje aplicados sistematicamente evitam a morte de 3 milhões de pessoas a cada dano. Evitariam outro 1,5 milhão de fatalidades se as coberturas fossem mais eficazes. Recentemente, a Organização Mundial da Saúde publicou uma lista com as dez grandes ameaças à sanidade planetária e no topo dela estava a relutância ou recusa em tomar vacinas. A ameaça ganhou peso similar ao de situações dramáticas, como a exposição crônica à poluição e a falta de acesso ao saneamento básico. Por isso, tudo somado, o passo britânico foi inesquecível e será celebrado no futuro como uma conquista histórica.
Em tempo: o segundo britânico a ser vacinado, o segundo em todo o mundo, portanto, chama-se William Shakespeare. Tem 81 anos, muita vida pela frente e também vive em Coventry — cidade a pouco mais de 30 quilômetros de Stratford-upon-Avon, local de nascimento de seu homônimo mais famoso. É o caso, ancorado na coincidência, de beber um pouco de uma das mais famosas frases das peças do bardo, dita por Marcelo em Hamlet: “Há algo de podre no reino da Dinamarca”. Troque-se o país nórdico pelo Brasil, e a exclamação serve de alerta para os passos que ainda precisamos dar. Há risco de se perder o passo num momento importante, mas ainda é possível corrigir a rota, de modo a debelar o veneno da ideologia, para que os brasileiros — tal qual Margaret e Shakeaspeare — possam ser imunizados. E serão, porque, como cunhou o gênio das letras em sua derradeira peça, A Tempestade, de 1610, “somos da mesma substância que os sonhos”.
Publicado em VEJA de 16 de dezembro de 2020, edição nº 2717