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Com mais de 50 mortes, dengue se alastra e deixa Brasil em alerta

Chaga histórica na saúde pública brasileira decola em nova onda, impulsionada pela negligência com o mosquito e pelos efeitos das mudanças climáticas

Por Paula Felix Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 09h34 - Publicado em 8 fev 2024, 20h04

É a crônica de uma epidemia anunciada. Basta a temperatura subir para um exército alado se alastrar, voando atrás de sangue a fim de se alimentar e se reproduzir, transmitindo, a cada picada, um vírus que causa febre, dor no corpo, prostração e até morte. A história se repete há séculos, todo verão, mas digamos que o Aedes aegypti — o “odioso do Egito”, como evoca o nome de batismo — ganhou nos últimos anos um aliado e tanto, o aquecimento global. E, depois de meses aparentemente no fogo brando, a dengue, principal moléstia transmitida pelo mosquito nestas paragens, pegou fogo. Desde os primeiros dias de 2024 até a última quarta-feira, 7, foram registrados mais de 392 000 casos e 53 mortes pela doença no Brasil. Tudo indica que, passado o Carnaval, bateremos um novo recorde, temor que desencadeou uma força-tarefa nacional, com decreto de emergência em cidades como Rio de Janeiro, implementação de tendas para atendimento médico no Distrito Federal e monitoramento de terrenos abandonados e propícios aos criadouros do inseto por meio de drones em cidades do Sul e Sudeste.

arte dengue

O que diferencia a atual revoada do Aedes das temporadas passadas é um cenário ainda mais desfavorável ao combate do vetor por culpa do próprio ser humano: além de “domesticar” os mosquitos ao lhes fornecer comida e casa própria no quintal das casas nos centros urbanos, em águas paradas, a sociedade tem parcela de responsabilidade pelas mudanças climáticas que contribuem para a proliferação do inimigo. Se já era duro, pode piorar. O Brasil tem no currículo uma longa trajetória de lutas com mazelas propaladas por insetos. Foi assim com a febre amarela, que inclusive causou pânico em outros Carnavais, ainda no século XIX. Quanto à dengue, praga que se concentra eminentemente nas cidades, preocupando os foliões e viajantes de hoje, sabe-se que, desde que o Aedes se instalou de vez em nosso território, os picos tendem a ocorrer a cada três ou quatro anos. Recentemente, depois da última alta em 2019, um novo movimento de ascensão começou em 2022.

CRIADOURO - Água parada: 75% dos focos de mosquitos estão nas residências
CRIADOURO - Água parada: 75% dos focos de mosquitos estão nas residências (Guito Moreto/Agência O Globo/.)

Mas a escalada só ocorreu efetivamente no ano passado, quando houve 1 658 816 notificações e 1 904 mortes no país — fora o que não foi computado oficialmente. Ainda em maio de 2023, houve a apresentação de um plano federal de enfrentamento às três principais doenças relacionadas ao mosquito, que englobam, também, chikungunya e zika. O programa visava à adoção de novas tecnologias para somar às medidas usuais, como a eliminação de redutos de poças. Na ocasião, foi resgatada a proposta de soltar mosquitos estéreis em áreas urbanas com índices elevados e o uso dos “wolbitos”, Aedes infectados com a bactéria Wolbachia, que freia a contaminação do inseto pelo vírus e diminui as chances de o patógeno passar para as proles. Contudo, são ações que demandam tempo até surtirem algum efeito na população dos vetores. Pois chegamos a 2024 numa corrida contra o relógio, com projeções nada animadoras. “A previsão é que tenhamos ao menos 2 milhões de casos de dengue neste ano. Não há sistema de saúde que suporte”, afirma o médico Kleber Luz, da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI).

FUMACÊ - Última cartada: medida tradicional é adotada quando o número de infecções sai de controle
FUMACÊ – Última cartada: medida tradicional é adotada quando o número de infecções sai de controle (Prefeitura Municipal de Barra Mansa/.)
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O problema, aliás, se adiantou até no calendário habitual — o período crítico estava estimado para o fim de fevereiro. Já na primeira semana de 2024, o Acre decretou situação de emergência, expediente tomado na sequência por Distrito Federal, Minas Gerais e Goiás. A cidade do Rio de Janeiro, após contabilizar mais de 10 000 episódios, anunciou estar em meio a uma epidemia e também entrou em emergência. O alastramento atual fica visível nas medidas para conter o mosquito na fase mais difícil do ponto de vista biológico: quando ele já virou adulto. O Distrito Federal, por exemplo, abriu um edital de urgência para contratação dos tradicionais carros de fumacê, um símbolo de surto em curso. Para amenizar febre, dor e risco de desidratação dos pacientes, entraram em cena as tendas e até um hospital de campanha da Força Aérea Brasileira (FAB) com sessenta leitos. Nessas unidades, é oferecido suporte para os principais sintomas, pois não há medicamento contra o vírus. “O tratamento é feito com analgésico, antitérmico e hidratação”, resume Luz. A busca por atendimento deve ser rápida, sobretudo na presença de sinais de agravamento, como dor abdo­mi­nal, tontura, vômito e queda da temperatura corporal. O quadro chega a ser debilitante, sendo chamado pela própria Organização Mundial da Saúde (OMS) de “febre quebra-ossos”.

Preocupado com o voo da dengue, o Ministério da Saúde criou um Centro de Operações de Emergência (COE) dedicado a desenvolver, em conjunto com estados e municípios, estratégias de vigilância e combate ao mosquito, medida que recorda a mobilização ante a Covid-19 — infecção que, convém notar, continua fazendo vítimas, com direito a uma nova subvariante no ar. Em pronunciamento em rede nacional, a ministra Nísia Trindade fez um apelo para que a população entre na batalha, uma vez que a maior parte dos criadouros do mosquito se encontra nas residências. “Vamos fazer com que a dengue seja uma doença do passado”, declarou.

Dengue
EMERGÊNCIA - Tendas armadas no DF: unidade da FAB tem sessenta leitos (Renato Alves/Agência Brasília/.)
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O adversário é realmente histórico. Há registros da doença, batizada de “veneno da água”, em enciclopédias chinesas de antes do ano 1000. A primeira descrição científica, no entanto, só seria feita no século XVIII. O mosquito transmissor também é um velho conhecido, inclusive no Brasil. Em 1908, em uma das explosões de outra moléstia transmitida pelo inseto de manchas esbranquiçadas e sobrevoos baixos, a febre amarela, o pesquisador Antonio Peryassú (1879-1962) realizou uma profunda investigação para descortinar o ciclo de vida do Aedes. Ele descobriu, de forma pioneira, a informação crucial de que os ovos das fêmeas chegam a sobreviver até um ano sem contato com a água — um alerta que norteia ainda hoje as medidas de cerceamento aos focos e surtos.

FOLIA DO MOSQUITO - Terror no Carnaval: charge sobre surto de febre amarela em 1876
FOLIA DO MOSQUITO - Terror no Carnaval: charge sobre surto de febre amarela em 1876 (Biblioteca Nacional Digital/.)

Ocorre que, com a propagação desenfreada do seu agente transmissor no rastro da urbanização sem planejamento, a dengue se elevou à questão de saúde pública. E, com o aquecimento global, a ameaça não se restringe ao Brasil ou a nações mais pobres na América Latina e na Ásia. O Hemisfério Norte está entrando na rota da doença. O mais recente balanço da OMS aponta um aumento de dez vezes no número de casos notificados ao redor do mundo, saltando de 500 000 em 2000 para 5,2 milhões em 2019. Em 2023, foram 5 milhões de casos e 5 000 mortes relacionadas à infecção em mais de oitenta países. A maioria dos registros, em torno de 80%, ocorreu nas Américas. “O Brasil enfrenta desafios significativos, como o surto atual alimentado pelo fenômeno climático El Niño, mas esse cenário faz parte de um contexto de aumento global que afeta todas as regiões, exceto a Europa”, disse, durante visita a Brasília, Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-­geral da OMS.

Vacinação
ESPERANÇA - Vacinação: crianças e adolescentes de 6 a 16 anos terão prioridade (Douglas Magno/AFP)
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No encontro para discutir esses e outros desafios sanitários, o líder da entidade conversou com o presidente Lula e com a ministra da Saúde sobre a produção de vacinas, e destacou a relevância do Brasil ao introduzir, em feito inédito, um imunizante contra a dengue no sistema público. De fato, a vacinação deve ser o ponto de inflexão na batalha contra a virose — foi assim com a Covid-19, o sarampo, a febre amarela… O governo anunciou a incorporação de uma formulação do laboratório japonês Takeda, a Qdenga, no Programa Nacional de Imunizações (PNI). Desenhar o produto foi tarefa hercúlea. A começar pela existência de quatro sorotipos do vírus da dengue. Ora um, ora outro irrompe na temporada mais quente e chuvosa — atualmente é o tipo 2. Quando se pega a doença espontaneamente, a imunidade só é formada para aquela versão da infecção, que ainda pode agravar quadros subsequentes dos outros subtipos. Esse dilema foi superado nos estudos com o imunizante, já aprovado pelos órgãos regulatórios em termos de eficácia e segurança.

INIMIGO ANTIGO - Pesquisas com o Aedes em 1908: descobertas vitais
INIMIGO ANTIGO - Pesquisas com o Aedes em 1908: descobertas vitais (Reprodução do livro Os Anophelíneos do Brasil, de Antonio Peryassú/.)

O desembarque do produto no mercado foi acompanhado de um pico de buscas em farmácias e clínicas privadas — crescimento de 200% em relação ao ano passado. Com a entrada no SUS, o ministério vai disponibilizar pouco mais de 750 000 doses gratuitas priorizando o público de 10 a 14 anos na primeira etapa da campanha. Depois será contemplada a faixa de 6 a 16 anos, como preconizado pela OMS. Prevê-se a aplicação de 6 milhões de doses em 2024 e outros 9 milhões em 2025, se o cronograma for seguido. “A melhor performance dessa vacina foi vista entre os adolescentes, que são o segundo grupo com mais hospitalizações, depois dos idosos”, diz Renato Kfouri, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).

PAUTA Nº 1 - Plano: Adhanom, da OMS, discute medidas com Lula e a ministra Nísia
PAUTA Nº 1 - Plano: Adhanom, da OMS, discute medidas com Lula e a ministra Nísia (Ricardo Stuckert/PR)
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arte Dengue

Um reforço de peso — e made in Brazil — deve vir com outro imunizante em fase final de desenvolvimento, concebido pelo Instituto Butantan, em São Paulo. Em pesquisa publicada internacionalmente, ele demonstrou capacidade de proteção de quase 80%. “É como se fossem quatro vacinas ao mesmo tempo, gerando uma resposta balanceada e complementar”, diz o infectologista Esper Kallás, diretor do Butantan. A inovação será submetida à Anvisa no segundo semestre. Enquanto as vacinas não triunfam, resta a todos nós evitar os erros de outros Carnavais, como nos idos de 1870, quando a figura da morte era morbidamente satirizada entre os foliões que desprezavam a chaga da febre amarela espalhada pelo mosquito. Com a dengue, definitivamente, não pode ser assim.

Publicado em VEJA de 9 de fevereiro de 2024, edição nº 2879

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