Coronavírus no Brasil: como o país se organiza para combater a ameaça
Com a revelação do primeiro caso, as autoridades se mexem para evitar o pânico. A boa notícia: há conhecimento e preparo para impedir um mal maior
As máscaras brancas de porcelana são tão indissociáveis do discreto Carnaval da Sereníssima quanto Shylock e Antônio de O Mercador de Veneza, tragicomédia de William Shakespeare (1564-1616) que se passa na incontornável cidade flutuante pousada no Adriático. Em fevereiro, os acessórios transportados das coxias e dos palcos do teatro para a Praça São Marcos e para os becos ganharam novos pares: máscaras cirúrgicas brancas, rosa e azuis, usadas para proteger foliões e policiais do risco de contaminação pela nova cepa do coronavírus, o Sars-CoV-2, vetor de uma doença respiratória batizada de Covid-19, que saiu da China e começou a circular pela Europa. No domingo 23, com a confirmação de 152 casos e três mortes na região norte da Itália, as autoridades locais decidiram suspender a folia veneziana. Se era preciso um símbolo para traduzir a travessia da epidemia da Ásia para outros continentes, as fotografias melancólicas do atual inverno no Vêneto serviram a esse propósito tristemente didático.
E, se fosse imperativo escolher um retrato para ilustrar a vinda de infecções pulmonares agudas provocadas pelo microrganismo para o chamado Novo Mundo, ele desembarcou no Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, na sexta-feira 21, véspera da folia de momo, antecipando, silenciosamente, a Quarta-Feira de Cinzas. Soube-se que, na segunda-feira 24, um homem de 61 anos, J.C.F.C., que chegara três dias antes de uma viagem a trabalho à Lombardia, com embarque em Milão e conexão em Paris, pelo voo AF454 da Air France, fora ao pronto-socorro do Hospital Albert Einstein reclamando de sintomas típicos do Covid-19 — tosse seca, febre, dor de garganta e coriza. Ele foi liberado no mesmo dia. Hoje, está isolado em casa, na região de Santo Amaro, Zona Sul da cidade, onde permanecerá por mais alguns dias, quando deverão desaparecer os sinais da infecção. “Ele está sendo acompanhado diariamente por uma equipe médica e por enquanto não há razão para retorno ao hospital”, diz Sidney Klajner, presidente do Hospital Albert Einstein. Até a quinta-feira 27, havia outros 132 casos suspeitos no país. Desses, 121 pessoas viajaram recentemente para países com transmissão da doença e três delas teriam tido contato com o paciente zero. Cerca de trinta cidadãos que também estiveram com a primeira vítima brasileira estão sendo monitorados. No domingo 23, o paciente participou de um almoço em São Paulo com esse grupo. A Agência de Vigilância Sanitária notificou a Air France de modo a obter a lista de passageiros a bordo e parte deles está sendo monitorada.
O diagnóstico brasileiro, o primeiro da América Latina, elevou a estatística, até a o meio-dia da quinta-feira 27 de fevereiro, a 78 524 casos na China e 4 064 em outras partes do mundo. Naquele dia, aliviada, a China registrou “apenas” 450 novos casos, enquanto no resto do planeta eram confirmados 739. Os dados levaram a Organização Mundial da Saúde (OMS) a emitir alarmes sobre a falta de condições de vários rincões, inclusive nove países da África com os quais já vinha cooperando, para o enfrentamento da doença. A entidade prepara-se para, a qualquer momento, ter de declarar o surto como pandemia — o termo usado quando a proliferação do vírus causa mortes em pelo menos três continentes.
Já não há, portanto, como mascarar, carnavalescamente, uma realidade incontornável, e com uma novidade interessante demais para ser descartada: o vírus saiu de ditaduras como China e Irã e agora grassa em democracias. Isso faz toda a diferença, porque as respostas precisam ser dadas, já não podem ser escondidas. É natural e humano que o vírus do pânico se alastre mais rapidamente que seu irmão bioquímico, real. No entanto, não se trata de alimentar o pavor. Dito de outro modo, em forma de pergunta, com zelo pelo Brasil: o país está preparado para o espraiamento do vírus? “Sim”, diz o infectologista Celso Granato, diretor clínico da rede de laboratórios do Grupo Fleury. “Para citar um exemplo emblemático, no caso do surto do H1N1, por exemplo, ocorrido em 2009, o Brasil passou a ter teste próprio da doença depois dos primeiros casos. Agora, o primeiro caso já foi detectado com o exame específico.” Rapidez de diagnóstico é o nome do jogo.
Do ponto de vista da estrutura emergencial, o governo federal anunciou a distribuição de equipamentos de proteção individual, como máscaras e luvas, além de aparelhos de suporte ventilatório e medicamentos antigripais, à medida que novos episódios forem confirmados — e não é difícil que surjam. As regiões urbanas do país já se organizam para liberar leitos e deslocar médicos especializados, algo que, como era de esperar, funciona melhor nos estados mais ricos que nos mais pobres. O governo de São Paulo anunciou, logo depois da ocorrência inicial, a criação de um centro de contingência para coordenar ações contra a propagação do coronavírus. Uma das primeiras medidas será isolar leitos de hospitais públicos e privados para receber eventuais pacientes infectados. Haverá também medidas de proteção a profissionais de saúde e acompanhamento rigoroso do fluxo de entrada de pessoas no sistema de atendimento hospitalar. “Um governo de ação rápida e uma população bem informada constituem um sólido pilar de contenção de doenças respiratórias”, diz o infectologista David Uip, coordenador do projeto paulista.
A circulação de informações, sobretudo em tempos de redes sociais, é vital para o controle de epidemias, no avesso do que arriscou o secretário de Vigilância do Ministério da Saúde, Wanderson Oliveira, que inventou uma palavra um tanto deslocada para atacar o diz que me diz que: “infodemia”. Há pânico desmedido, mas não em virtude de “infodemia”. Em nome de controle mais refinado, as dúvidas precisam ser tratadas com cuidado, como ocorre nas trocas saudáveis entre médicos e pacientes. VEJA ouviu especialistas para definir as quatro questões fundamentais.
Há motivo para preocupação? É preciso bom-senso e cuidado, mas é desnecessário sair correndo para os prontos-socorros. A possibilidade de novos casos no Brasil é real, mas dificilmente será alta. A capacidade de transmissão é considerada de baixa para média — cada infectado pode passar o vírus para 2,5 pessoas em média (veja o quadro na pág. 32). Pacientes com sarampo, a título de comparação, podem infectar até dezoito pessoas. Há ainda uma questão crucial: estamos no verão e, quanto maior a temperatura, menos ativo é o coronavírus. Ele tem uma membrana externa especialmente sensível ao calor. Sobrevive a 60 graus negativos, mas perde totalmente a atividade a 37 graus. Durante o surto de Sars de 2003, também pertencente à família do coronavírus, para cada aumento de 1 grau na temperatura em Hong Kong, onde o vírus matou quase 300 pessoas, o número de casos confirmados diminuía 3,6%.
Como se prevenir do contágio? A contaminação ocorre por gotículas da respiração ou pelo contato físico a uma distância inferior a 2 metros com o portador da doença. É necessário lavar as mãos constantemente, com intervalos entre duas e três horas. Caso a pessoa tenha frequentado ambientes com grande fluxo de gente — como metrôs, ônibus, trens, blocos de Carnaval —, é imperativo lavar as mãos imediatamente com água e sabão em abundância ou passar álcool em gel. Deve-se também evitar tocar no rosto. São orientações aparentemente comezinhas, mas fundamentais.
É preciso usar máscara facial? Os infectados, sim. O tecido funciona como uma barreira ativa contra a infecção, impedindo que as gotículas se espalhem. As proteções devem ser trocadas a cada duas horas. O tecido umedecido perde a capacidade de bloqueio. Para as pessoas saudáveis é pouco útil.
Quem são as pessoas mais vulneráveis? A letalidade do vírus é baixa, de 3,4%, próximo à do H1N1. As mortes ocorrem com maior frequência entre idosos acima de 80 anos (15% dos casos nessa faixa etária) portadores de doenças crônicas. Na faixa dos menores de 49 anos, caem para 1%. Em crianças, os sintomas são ainda mais brandos.
A postura brasileira, de rápido isolamento e imediata quarentena, associada ao conhecimento disponível, dá as mãos a determinações corretas de outros países — em situações de epidemia virótica, trata-se da decisão mais acertada e também de mais simples execução. É o que fizeram, ainda que tardiamente, o governo da China e, agora, dezenas de cidades do Vêneto e da Lombardia, submetidas à reclusão pelo governo italiano naquele mesmo domingo em que o Carnaval veneziano expirou. O teatro Scala de Milão fechou suas portas e quatro partidas do campeonato italiano de futebol foram canceladas. Os cidadãos, agora fechados em casa, esvaziaram as prateleiras dos supermercados. No Japão, o campeonato de futebol foi interrompido até 15 de março, atalho para preocupação em torno da realização da Olimpíada, em julho e agosto, ímã de aglomerações. As aulas foram suspensas.
Vários países se precaveram por meio do fechamento de suas fronteiras terrestres com a China — caso da Rússia —, e até mesmo o território autônomo chinês de Hong Kong impôs restrições ao fluxo de pessoas indo e vindo do continente. Os Estados Unidos foram um dos primeiros a proibir estrangeiros que tivessem estado na China nos catorze dias anteriores. A medida foi criticada como discriminatória e estimuladora de xenofobia, mas expressou, na essência, o receio do presidente americano Donald Trump de ser apontado como responsável final pela proliferação do coronavírus em seu país no período em que disputa a reeleição. A Casa Branca ainda requisitou ao Congresso a liberação de 2,5 bilhões de dólares para a criação de um fundo de combate à epidemia, que direcionaria metade desse montante ao desenvolvimento de uma vacina. A oposição democrata, porém, não demorou para espicaçar o presidente com a acusação de subestimar a desgraça a caminho. Para embaraço de Trump, que declarou estar “tudo sob controle”, um alerta oficial foi disparado na terça-feira 25 pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), a draconiana agência sanitária do governo americano. Ao advertir a população e os tomadores de decisão dos EUA de que a chegada da epidemia não é questão de “se”, mas de “quando”, o CDC afirmou que o surto “pode ser pior” do que o esperado e recomendou o trabalho em casa e mesmo a suspensão das aulas. Até a última quinta-feira, 27, o país registrava sessenta pacientes da Covid-19.
A firmeza do CDC e o comportamento de Trump podem soar mercuriais, mas talvez não sejam. Em casos de epidemias e pandemias, se as autoridades fazem muito, são acusadas de provocar pânico desnecessário. Se fazem pouco, são irresponsáveis. Esse vaivém mexe diretamente com a economia — alarde demais faz as bolsas cair, mas alarde de menos também é ruim, na medida em que teorias sobre a disseminação do vírus contaminam as projeções dos economistas. Parece não haver solução, uma vez que a reação econômica sempre é mais açodada. Conforme o número de pessoas infectadas fora da China crescia exponencialmente entre a quinta-feira 20 e a terça 25, os principais índices de ações das bolsas americanas derretiam. O mais representativo, o S&P 500, despencou 7,2% nesse período. No Brasil, as informações divulgadas durante o Carnaval deixaram os analistas atordoados. De uma só vez, ao reabrir o pregão depois do feriado, o Ibovespa absorveu todo o impacto que no resto do mundo foi dosado — e recuou 7%, para 105 718 pontos, o menor patamar desde 18 de outubro de 2019.
Os economistas estão revendo, neste momento, as projeções de crescimento da economia brasileira e global. O Fundo Monetário Internacional já advertiu que a epidemia custará ao mundo pelo menos 0,1 ponto porcentual do crescimento neste ano. A conta é mais grave quando se olha com lupa para o Brasil. Em janeiro, a expectativa era de crescimento de 2,3% neste ano. No mínimo 0,4 ponto porcentual pode ser extirpado da alta prevista para 2020. “Ninguém hoje está isento da engrenagem da globalização”, diz Ernesto Lozardo, da Fundação Getulio Vargas. “O transporte aéreo sofrerá com a queda de passageiros, assim como o turismo. Os investimentos internacionais ficarão travados. Ainda é cedo para prever o tamanho do impacto, mas o fato é que o fluxo de dinheiro que faz a roda girar diminuirá.”
Efeitos de ordem prática já podem ser acompanhados. A Associação de Agências de Viagens Corporativas recebeu pedidos de cancelamento. Um grupo de governadores e secretários de estados do Sul e do Sudeste, que voaria em maio para a China, está por um fio de abortar a missão. A saída das autoridades para compensar esse movimento natural de retração, provocado pelo medo, é injetar dinheiro na economia. O governo chinês liberou um volume de 72 bilhões de dólares em crédito para famílias de locais infestados pela Covid-19. “É provável que os países recuperem apenas uma pequena parte do crescimento perdido com a ajuda de estímulos”, diz Jacob Kirkegaard, do Peterson Institute, de Washington.
Só haverá calma quando os gráficos mostrarem quedas consistentes. Isso poderá ocorrer, como se deu com o Sars, a partir de 2002, em virtude de políticas públicas velozes. Pode haver tranquilidade também quando a epidemia perder força naturalmente, e o bom exemplo é o vírus zika, que se espalhou nas Américas Central e do Sul em 2015 e 2016 e recuou. A explicação: surtos de doenças são como incêndios. O vírus é a chama. As pessoas suscetíveis são o combustível. Um surto é freado quando já não encontra vítimas fragilizadas. Mas, do ponto de vista da expectativa, nada supera o anúncio de uma vacina. No início desta semana, a empresa de biotecnologia americana Moderna enviou ao Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas (Niaid) dos Estados Unidos uma vacina experimental contra a Covid-19. O desenvolvimento ocorreu em 42 dias, um tempo recorde. Segundo a empresa, os testes iniciais da potencial vacina, chamada de mRNA-1273, poderiam começar em abril, mas todo o processo regulatório duraria pelo menos um ano. A empresa chinesa de biotecnologia Clover Biopharmaceuticals fez parceria com a britânica GlaxoSmithKline para testar um produto semelhante. São pontos de esperança no horizonte do coronavírus, agora também um problema brasileiro.
Colaboraram Denise Chrispim Marin e Machado da Costa
Publicado em VEJA de 4 de março de 2020, edição nº 2676