Covid-19: número de casos aumenta, mas o de mortes tende a se estabilizar
O cenário atual no Brasil autoriza a flexibilização da quarentena. A medida, no entanto, só será viável se for conduzida com extremo rigor
O mineiro Marco Cesar Pereira, de 38 anos, está entre os mais de 650 000 brasileiros recuperados da infecção pelo novo coronavírus. No começo do mês, ele foi celebrado como o paciente número 1 000 a deixar o hospital de campanha instalado no gramado do Estádio do Pacaembu, em São Paulo. O número redondo sensibilizou a equipe de médicos e enfermeiros, que, por instantes fugazes, suspendeu os trabalhos para acompanhar em festa a saída do homem pelo portão principal, a caminho dos abraços de familiares. A saúde recuperada de Pereira era o marco do início de um momento de relativa paz. Três semanas se passaram e as instalações emergenciais do Pacaembu, com apenas 17% de ocupação (índice que há um mês chegou a 80%), fecharão as portas nos próximos dias — a exemplo do que aconteceu no Hospital de Campanha de Manaus, que encerrou as atividades no último dia 24. São indícios de que, nas próximas semanas, as boas notícias em torno da pandemia poderão talvez brotar com mais frequência. Os registros confirmados da doença crescem e, no entanto, a média de mortes semanais tende à estabilização (veja o quadro abaixo). Não é hora, insista-se, de nenhum tipo de recuo nos protocolos de cuidados, que incluem o distanciamento e o uso de máscara, com mais de 1 milhão de casos e 55 000 mortes em todo o país. Há um drama que não pode ser desdenhado e deixará marcas indeléveis. E, no entanto, já se pode respirar, com extremo zelo e atenção.
O que estaria por trás desse primeiro passo? Há mais de uma explicação. Uma das mais relevantes é a própria sazonalidade do vírus. Mesmo com oscilações, previstas pelos epidemiologistas, algumas cidades têm percebido desaceleração no ritmo de crescimento de fatalidades, como Manaus, São Paulo, Belém e Rio de Janeiro. Elas estão entre as primeiras a registrar casos da doença e já estiveram à beira do colapso. Capitais do Sul do país, como Curitiba e Porto Alegre, onde a infecção surgiu mais tarde, vivem situação oposta, com leitos lotados. Há, no entanto, um outro fator decisivo, sinônimo de alento: as condutas médicas estão mais certeiras. Diz Ludhmila Hajjar, professora de cardiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e intensivista da Rede D’Or: “A experiência com o comportamento do Sars-CoV-2 fez com que mudássemos os tratamentos, o que impactou fortemente no número de mortes”. Lembre-se — e como esquecer? — da cloroquina, medicação usada como bandeira política, mas também considerada por muitos médicos como a salvação no início da pandemia. Com o tempo, contudo, estudos revelaram que a droga não trazia benefícios ao doente com Covid-19. Pelo contrário, causava mais mortes atreladas a efeitos colaterais drásticos. Neste mês, a agência reguladora americana revogou a autorização que havia concedido no começo do surto para o uso do remédio em caráter emergencial nos infectados, e a OMS suspendeu as pesquisas com a cloroquina. Houve, paralelamente, extraordinários avanços medicamentosos e de observações clínicas.
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Clique e AssineCorticoides. Os potentes anti-inflamatórios ganharam espaço nos tratamentos. Estudo da Universidade de Oxford mostrou que entre os pacientes graves, com necessidade de respirador, a quantidade de mortes foi reduzida em um terço.
Coração. Quatro em cada dez mortes por Covid-19 são em decorrência de complicações cardíacas, uma informação até há pouco tempo desconhecida. Cientes de que devem cuidar desde o início da saúde do órgão, os médicos agora conseguem retardar o surgimento do problema.
Rins. A conduta inicial era dar diurético a todos os doentes intubados. O método é baseado na lógica de que a água ajuda a eliminar o líquido represado nos pulmões, um efeito severo grave do novo coronavírus. A medida, porém, aumentou as taxas de insuficiência renal e de necessidade de hemodiálise, acelerando a morte. O uso do remédio caiu drasticamente.
Convém, no entanto, não baixar a guarda. Pode soar repetitivo, depois de tanta insistência e tanto tempo de quarentena, mas o tal “novo normal” exigirá acompanhamento minucioso. “As autoridades e a sociedade devem respeitar as regras de saúde e estabelecer reabertura extremamente responsável”, diz, sabiamente, Sidney Klajner, presidente do Hospital Albert Einstein, o primeiro a diagnosticar um caso de Covid-19 no Brasil, há exatos quatro meses. O próprio Einstein chegou a ter a movimentação de pacientes de outras enfermidades reduzida à metade, porque havia medo de contato com o vírus. É comportamento que começa a mudar, lentamente. O Hospital Infantil Sabará, em São Paulo, referência nos cuidados de baixa e altíssima complexidade em crianças e adolescentes no país, teve uma queda de 60% no número de cirurgias. Na última quarta-feira, VEJA registrou a operação cardíaca de um bebê de 3 meses. A mudança ocorreu com medidas severas de conduta, como a criação de entradas diferentes nos hospitais para pacientes com sintomas respiratórios, a oferta de exames aos que vão se submeter a operações e o aumento das consultas por telemedicina. Diz Ary Ribeiro, CEO do Sabará: “Passamos a funcionar como dois hospitais separados dentro de um só”.
Há muita estrada pela frente, feita de acostamentos e recuos — e a experiência internacional, apesar de todas as diferenças de estilo de vida e construção social, é bom espelho. Na quarta-feira 24, Paris fechou duas escolas recém-abertas depois do registro de casos positivos de coronavírus. A Austrália, país que conseguiu conter rapidamente a disseminação dos casos, recomendou o bloqueio de bairros inteiros após reuniões familiares e festas de aniversário causarem novos episódios de Covid-19. No Brasil, não por imitação, mas por necessidade, a toada é muito parecida, e assim será, por bom tempo.
Em menos de um mês após o anúncio de reabertura gradual da quarentena pelo governo de São Paulo, Campinas, a terceira maior cidade do estado, com 2,6 milhões de habitantes, decidiu, na segunda-feira 22, fechar novamente o comércio devido ao aumento da ocupação dos leitos de alta complexidade depois da flexibilização. Em Marília, decisão semelhante foi parar na Justiça. O prefeito Daniel Alonso (PSDB) declarou que não irá recuar da decisão de fechamento do governo estadual. O Ministério Público não concordou com a medida e foi ao Tribunal de Justiça pedir que ela seja reformulada.
O vaivém era esperado, natural — a situação é inédita, e o novo coronavírus tem peculiaridades completamente diferentes de outros microrganismos. Estamos aprendendo a lidar com ele. Uma das mais recentes e inusitadas suspeitas em relação ao agente, publicada na Nature Medicine, é sobre o tempo de imunidade que ele provoca no organismo de quem foi infectado: três meses, um tempo muito curto. Em tese, isso significaria que depois desse prazo o corpo poderia não estar mais protegido. Com o vírus H1N1, a proteção natural caduca depois de cerca de um ano. “Por isso, a chegada de uma vacina é ainda mais crucial do que se podia imaginar para o controle do vírus”, diz Bruno Scarpellini, epidemiologista e infectologista da PUC do Rio de Janeiro. O futuro próximo, e já estamos nos aproximando dele, será assim: boas notícias, algumas más, e permanente esperança do desenvolvimento de uma vacina.
Com reportagem de Mariana Rosário e André Siqueira
Publicado em VEJA de 1 de julho de 2020, edição nº 2693