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Covid-19: queda na média de mortes no Brasil traz sinais de alívio

É o início de uma etapa que comprova um novo comportamento da doença no país. Mas a cautela ainda é necessária

Por Giulia Vidale Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Alexandre Senechal Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 15h24 - Publicado em 11 set 2020, 06h00

A Praia de Ipanema lotada, em um fim de semana de feriado, foi sempre uma cena de celebração, a cara mais adorável e calorosa de um Rio de Janeiro tão frequentemente ferido. Neste ano, contudo, em plena pandemia do novo coronavírus, houve quem relacionasse a aglomeração a boa dose de irresponsabilidade. Evidentemente, havia ali quem pouco se incomodasse com as recomendações de saúde — mas uma boa parcela das pessoas desceu para a areia no último fim de semana, debaixo de sol forte, apenas porque, munida de informações reais, atenta às curvas de casos e mortes de Covid-19, e depois de seis meses de confinamento, viu no horizonte sinais de alívio. Não se trata, de modo algum, de esquecer as trágicas mais de 128 000 mortes deste 2020 interminável, marca pesada e triste de um país que não soube lidar com a mais agressiva crise sanitária de nosso tempo. As perdas precisam ser lembradas e relembradas, para que não se multipliquem ou sumam, e nada é mais constrangedor do que saber que o Brasil ocupa o terrível segundo lugar em óbitos em decorrência do vírus, atrás apenas dos Estados Unidos. Mas há, sim, janelas de esperança traduzidas em estatística.

Desde a notificação da morte número 1, em março, e depois de três meses de permanência em um platô incômodo, com média móvel superior a 1 000 óbitos diários, o país alcançou, finalmente, uma queda consistente nas mortes por Covid-19. No sábado 5 de setembro, a média de mortes no Brasil foi de 820, variação negativa de 18% em relação às duas semanas anteriores. Os epidemiologistas trabalham com redução na casa dos 15% para considerar o movimento de queda consistente. Ela chegou. Outro indicador do recuo da pandemia no Brasil é a taxa de transmissão da doença. Em agosto, o país conseguiu reduzir o índice para abaixo de 1, nível considerado de controle, segundo as balizas do rígido Imperial College, de Londres. O número indica para quantas pessoas cada infectado transmite o vírus. Nesta semana, a taxa teve uma leve piora, subindo para 1, mas está a anos-luz do número registrado no auge da disseminação, quando chegou a 3. Mesmo com o leve aumento, o Brasil tem taxa menor que a de outros países sul-­americanos e europeus, como Venezuela, Chile, Argentina, Paraguai, Reino Unido, Portugal, Itália e Espanha. Na quarta-feira 9, as mortes recuaram em dezenove estados da Federação. Em sete, houve manutenção dos números. Apenas em Roraima deu-se aumento da média móvel. Pode-se dizer, enfim, que a epidemia oferece indícios mais do que razoáveis de perder força no Brasil.

A inclinação na curva de óbitos por Covid-19 é creditada ao aprendizado adquirido em relação ao tratamento e acompanhamento dos pacientes. Ao longo de oito meses de pandemia no mundo, descobriu-se quem são os grupos de risco, a importância do diagnóstico e acompanhamento precoce dos infectados, além de tratamentos eficazes contra a doença. As evidências mais recentes comprovaram que corticoides comuns reduzem a mortalidade de doentes graves quando aplicados no sétimo dia, por exemplo. Diz o infectologista e epidemiologista Bruno Scarpellini, da PUC do Rio de Janeiro: “Saber que a dexametasona faz diferença em pacientes graves é um divisor de águas”. Outra hipótese é a possibilidade de o vírus ter se tornado menos virulento, ou seja, ter evoluído de forma a causar uma enfermidade menos agressiva. “Os médicos têm observado casos mais leves. Mesmo nos pacientes internados, o quadro não é tão grave quanto era em abril”, diz Scarpellini. O fenômeno também é percebido na Europa. Muitos países enfrentam um aumento no número de casos, o que indica uma segunda onda, mas não no número de óbitos.

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A inexorável movimentação, que tende a ganhar ímpeto, embora nunca se deve subtrair a possibilidade de alguma reviravolta e recuo, é avenida aberta para a introdução da peça tão ansiosamente esperada: a vacina, cuja procura rapidamente se transformou em alimento da diplomacia internacional e de governos em busca de votos. Nos Estados Unidos, a corrida pelo imunizante virou retórica eleitoral. O presidente Donald Trump, que briga pela reeleição, insinuou poder anunciar, antes mesmo de 3 de novembro, data da eleição presidencial, a boa-nova. “Teremos em breve essa incrível vacina, com velocidade nunca vista antes”, disse. Trump, é claro, acusou seu adversário, o democrata Joe Biden, de estar trabalhando contra a maré e fez do hipotético anúncio uma bandeira de campanha. Causou espanto, contudo, a revelação de que, no mesmíssimo dia em que Trump proferiu o discurso de confirmação da candidatura, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês) remeteu aos departamentos de saúde dos 51 estados americanos diretrizes para o preparo de ambientes refrigerados de modo a armazenar dois tipos de imunizantes contra o novo coronavírus e indicações de quem deveria receber primeiro a vacina — profissionais de instituições hospitalares. Embora o presidente americano seja conhecido pelas suas bravatas, e esteja ansioso para usar politicamente o anúncio de uma vacina, as instituições nos EUA são sérias e parecem estar se preparando para o grande dia. Tomara que seja logo.

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Há, na mesa dos laboratórios, ao menos 180 vacinas sendo testadas — nove delas já estão na derradeira etapa, a fase clínica 3, submetidas a dezenas de milhares de testes em seres humanos (veja no quadro). Quatro delas atraíram voluntários no Brasil: as da Universidade de Oxford em parceria com a farmacêutica britânica AstraZeneca, a chinesa Sinovac Biotech e as americanas da Pfizer e da Johnson & Johnson. Existem percalços, e não é prudente desdenhá-los. Na terça-feira 8, a AstraZeneca suspendeu, temporariamente, os testes com a vacina em todo o mundo, inclusive no Brasil, em parceria com a Unifesp e o Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino. O motivo: evento adverso imprevisto em uma voluntária do Reino Unido. Houve espanto, as ações da empresa nas bolsas de valores despencaram, mas essa foi uma medida de segurança. Tudo indica que os trabalhos serão retomados, depois da compreensão exata do que ocorreu — é zelo natural de qualquer iniciativa científica, sobretudo atrelada à vida das pessoas. Trata-se de uma freada, não uma interrupção. “A ação da AstraZeneca de interromper de forma ética e sem hesitar o processo de pesquisa ao mais remoto sinal de que algo pode estar errado, mesmo que tudo esteja certo, foi correta e exemplar”, diz o geneticista Salmo Raskin, diretor do Genetika, Centro de Aconselhamento e Laboratório de Genética, em Curitiba.

Essa é a diferença entre política e ciência. Em nome de mais votos ou aprovação popular, os processos não podem ser antecipados nem se pode fazer uma aposta em medicamentos que ainda não tiveram sua comprovação atestada. Não é prudente, por exemplo, ao arrepio de informações concretas, agir como o ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, que anunciou em alto e bom som depois de uma reunião ministerial: “Em janeiro do ano que vem a gente começa a vacinar todo mundo”. Tomara, mas e se houver atrasos, como pode acontecer com o produto de Oxford e da AstraZeneca? As duas partes da frase de Pazuello carregam problemas. A chegada das doses em janeiro é, por ora, uma possibilidade e uma imensa vontade — os laboratórios correm, têm pressa, a velocidade é fascinante, mas nenhum deles marcou oficialmente datas no calendário. Oferecer vacina a todo mundo, e aqui entramos na segunda porção do comentário de Pazuello, é uma dificuldade colossal, que exige dinheiro e inteligência, especialmente em um país de dimensões continentais como o Brasil. Depois de aprovada uma substância, o nó será distribuí-la, numa inescapável operação de guerra.

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Fiocruz
PREPARATIVOS - A fábrica da Fiocruz, no Rio de Janeiro: experiência histórica – (Ricardo Borges/VEJA)

Para antecipar o esforço logístico que promete ser o maior e o mais amplo de toda uma geração, a operadora de entregas DHL Logistics e a consultoria McKinsey apresentaram um estudo com números superlativos. A projeção é que serão necessários 15 000 aviões e 15 milhões de caixas térmicas com barras de gelo para distribuir 10 bilhões de doses de vacina por todo o planeta. Mas, para imunizar 90% da população global, pode ser preciso produzir mais de 17 bilhões de doses. Não, esse número não está superestimado, em um planeta com 7,8 bilhões de pessoas. Calcula-se que entre 20% e 30% das doses se percam durante o transporte, danificadas por temperaturas além do desejado, e o momento da aplicação. No Brasil, contudo, o Ministério da Saúde prevê apenas 10% de perdas no processo, em virtude da experiência do país na distribuição de vacinas. “Nossa capacidade é histórica, distribuímos mais de 300 milhões de doses de vacina por ano, temos competência balizada e comprovada com relação à capacidade logística e de capilaridade”, disse a VEJA o secretário em Vigilância de Saúde, Arnaldo Medeiros. “São 37 000 postos de vacinação no país. A vacina contra a Covid-19 não tende a ser tão diferente de qualquer outra.”

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A boa notícia é que teremos o produto por aqui, logo que a sua eficácia científica ficar comprovada. O governo de São Paulo fechou acordo para a produção de 120 milhões de doses da vacina de origem chinesa. No Rio, a Fiocruz está se preparando para produzir 30 milhões de unidades. Há dois meses, vinte pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio, têm reuniões diárias com representantes da farmacêutica AstraZeneca para discutir aspectos técnicos e começar a produção, em dezembro e janeiro. Há, ainda, um acordo com o Ministério da Saúde para a fabricação de outros 70 milhões de doses. Maior produtor mundial da vacina contra a febre amarela e fabricante de outros sete imunizantes (tríplice viral, pólio e rotavírus, entre eles), o complexo de Bio-Manguinhos, a unidade fabril da Fiocruz, foi escolhido para desempenhar esse papel por possuir uma robusta linha de produção montada. “Tudo está acontecendo em ritmo acelerado porque nesta primeira fase, quando o insumo será importado, só precisaremos fazer ajustes na nossa estrutura”, diz Maurício Zuma, diretor de Bio-Manguinhos.

Sala de aula na pandeimia
CUIDADOS - Escola de ensino fundamental particular em Sorocaba (SP): distância entre as carteiras e máscaras – (Adriano Vizoni/Folhapress/.)

As salas para a formulação e as linhas de envase e embalagem da vacina já estão reservadas e os equipamentos passam por revisões e testes. Pelo contrato firmado entre o governo brasileiro e a farmacêutica do Reino Unido também será feita a transferência de tecnologia (o segredo industrial) para a Fiocruz. A instituição carioca tem o apoio de um grupo de empresas e organizações, entre elas a Fudação Lemann, que fizeram uma doação de 100 milhões de reais. “Saímos na frente porque já temos uma grande estrutura. Só para encomendar da Europa e montar o maquinário da derradeira etapa de produção, levaríamos uns dois anos”, estima Luiz Lima, vice-diretor de produção da Fiocruz.

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No paulistano Instituto Butantan, o trabalho com a chinesa Sinovac Biotech anda a passos largos. A vacina, a Coronavac, está sendo testada em 9 000 voluntários de cinco estados brasileiros e o Distrito Federal. A estimativa inicial é que todos os pacientes recebam as duas doses do medicamento, ou placebo, até o fim deste mês. Não há relatos de problemas de rejeição entre os que já receberam o fármaco, somente dor no local da aplicação e quadros de indisposição, reações aguardadas nesse tipo de teste. O acordo é negociado inteiramente pelo Butantan direto com a farmacêutica chinesa por meio de ligações diárias em um aplicativo de videochamadas semelhante ao Zoom. “São duas sessões diárias, às 10 e às 22 horas, para atenuar o fuso horário entre os dois países”, diz o diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas. O que já foi combinado a distância é a entrega de 15 milhões de doses iniciais do fármaco pronto para aplicação, em seringas. O envio será feito em três lotes de 5 milhões de doses entre outubro e dezembro.

Há, enfim, muito otimismo. O pior momento, de fato, passou. Temos menos mortes, menos casos, as curvas exibem a nova realidade, a taxa de contágio chegou a patamares toleráveis. Ensaia-se o retorno às aulas presenciais, apesar do receio de pais e professores. Os cidadãos começam, enfim, a respirar, a ter coragem de sair do confinamento. A vida precisa continuar, sem jamais deixarmos de homenagear os mais de 128 000 brasileiros que partiram.

Com reportagem de Sofia Cerqueira, Mariana Rosário, Josette Goulart e Victor Irajá

Publicado em VEJA de 16 de setembro de 2020, edição nº 2704

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