Bebezinhos gorduchos são absolutamente irresistíveis. O problema é que a fofura não é nada bonitinha para a saúde da criançada. Ao contrário do senso comum, o excesso de peso desde muito cedo é prenúncio de saúde frágil ao longo da vida. E indicadores recentes não trazem boas notícias. A condição se agravou demais durante a pandemia. No início do mês, a revista científica The Lancet publicou um relatório do governo do Reino Unido mostrando que 2021 registrou o maior incremento da taxa de obesidade entre crianças e adolescentes desde a produção do primeiro levantamento, há quinze anos. Nos Estados Unidos, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças relatou, em setembro, que o índice de massa corporal — indicador de classificação de peso adequado, sobrepeso, obesidade e obesidade mórbida — dobrou nos últimos dois anos na faixa de 2 a 19 anos. O crescimento mais expressivo se deu entre crianças de 6 a 11 anos. No Brasil, a falta de dados atualizados já é uma tradição, mas, a contar pela experiência de profissionais tarimbados, o fenômeno se repete. No consultório do pediatra e nutrólogo Mauro Fisberg registra-se, em média, aumento de 6 quilos nos pacientes de 5 a 12 anos. Fisberg está à frente do Centro de Excelência em Nutrição e Dificuldades Alimentares do Instituto Pensi, ligado ao Sabará Hospital Infantil, em São Paulo.
Na apresentação dos dados, o periódico The Lancet definiu assim a dimensão do problema: o que até agora era uma preocupação acaba de se tornar uma séria crise de saúde pública. Há duas principais razões para o alerta. O acúmulo de gordura está associado a maior risco para doenças cardiovasculares, as que mais matam no mundo, e a determinados tipos de câncer. Começar esse processo tão cedo só encurta o caminho rumo às enfermidades. Deve-se lembrar ainda que, em geral, a obesidade vem acompanhada de diabetes tipo 2, sedentarismo e alta concentração de gorduras nocivas, incrementando o conjunto perfeito de fatores de risco. Do ponto de vista de saúde pública, a escalada do aumento de peso entre os pequenos eleva hoje e aumentará no futuro os custos da saúde, questão central no debate sobre a sustentabilidade financeira dos sistemas de atendimento.
O crescimento do total de crianças fora do peso na pandemia tem origem conhecida. Os pequenos ficaram dentro de casa, sem espaço para gastar energia e com tempo de folga para os eletrônicos. Um estudo publicado em novembro no Jornal da Associação Médica Americana revelou que nesses dois anos o tempo médio dos adolescentes americanos em frente às telas passou de 3,8 horas por dia para 7,7. A qualidade da alimentação também piorou. Pizza, salgadinhos e doces integraram os cardápios conforme o isolamento em casa se prolongava. Em famílias privilegiadas, no início até se tentou outro caminho. “Houve um período de lua de mel nutricional para algumas famílias, que cozinharam e fizeram refeições juntas”, diz Fisberg. “Mas isso demorou pouco e elas foram em direção à praticidade.”
Pesquisas realizadas antes da pandemia já apontavam uma situação crítica. Em 2017, a análise de mais de quarenta anos de estudos sobre o tema rendeu a previsão de que se as tendências pós-anos 2000 continuassem, em 2022 o mundo teria, pela primeira vez, mais crianças e adolescentes obesos do que com baixo peso. O levantamento, feito pelo Imperial College London e pela Organização Mundial da Saúde (OMS), tinha como cenário a tendência mundial de aumento da obesidade. O peso e a altura de quase 130 milhões de crianças, adolescentes e adultos foram avaliados. Resultado: as taxas de obesidade saltaram de menos de 1% em 1975 para 6% entre meninas e 8% entre os meninos em 2016. A OMS alertava sobre o fato de que o número de crianças de 5 a 19 anos no mundo com peso excessivo tinha aumentado mais de dez vezes, passando de 11 milhões em 1975 para 124 milhões em 2016. À época, Majid Ezzati, professor da Escola de Saúde Pública do Imperial College London e autor principal do estudo, apontou algumas causas para os resultados. “As tendências refletem o impacto do marketing e das políticas de alimentos. Opções saudáveis e nutritivas são muito caras para famílias pobres”, disse.
No Brasil, os estudos indicavam a mesma direção. O Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional, que reúne dados nacionais, mostrou, em 2019, que 7,9% das crianças menores de 2 anos estavam com sobrepeso ou obesidade. Entre adolescentes, o índice era de 18%. Segundo o Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil feito no mesmo ano, 80% das crianças brasileiras de até 5 anos consumiam alimentos ultraprocessados, como biscoitos, o que também podia ser observado entre bebês com menos de 2 anos. A Sociedade Brasileira de Pediatria relembrou uma previsão sombria da OMS. Em 2030, o Brasil pode ser o quinto país com o maior número de crianças e adolescentes obesos. Se nada for feito, a possibilidade de reverter a projeção é de somente 2%.
Mudanças de hábitos e políticas públicas consistentes não nascem de um dia para o outro. Contudo, há tempo para agir. No Reino Unido, teve início no mês passado um programa para atendimento de crianças e adolescentes severamente obesos em clínicas especializadas do Sistema Nacional de Saúde. O serviço oferece de planos de dieta a tratamento para depressão e ansiedade, dois fatores de risco para o excesso de peso. O envolvimento da escola e das famílias somado a iniciativas da indústria para colocar no mercado produtos mais saudáveis ajuda também.
Além disso, coisas simples, como resgatar o básico na cozinha, a comida como faziam nossos avós, é outra saída. “É fundamental adotar preparações tradicionais, menos industrializadas”, orienta Daniela Neri, pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo. E, para conquistar o paladar dos pequenos, vale passear na feira, brincar no preparo das refeições, juntar a família à mesa. Comer direito pode ser divertido, e certamente levará a adultos mais saudáveis.
Publicado em VEJA de 22 de dezembro de 2021, edição nº 2769