Dengue e chikungunya encurtaram vidas em até 22 anos no Brasil
Maior análise já feita no país, publicada na revista The Lancet, revela perda precoce de anos de vida e impacto desproporcional segundo cor da pele e região

Dengue e chikungunya costumam ser vistas como infecções autolimitadas e de baixa letalidade. Mas um estudo recente — o maior já feito no Brasil sobre essas arboviroses — mostra que o impacto dessas doenças é maior do que se imaginava, especialmente entre crianças, idosos, pessoas negras e indígenas. Publicado na revista científica The Lancet, o levantamento mostra que pessoas que morreram em decorrência dessas infecções perderam até 22 anos de vida em relação à expectativa média esperada.
A pesquisa foi realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Fundação Getúlio Vargas (FGV) e a London School of Hygiene & Tropical Medicine, que analisaram todos os casos notificados de dengue (13,7 milhões) e chikungunya (1,1 milhão) entre 2015 e 2024.
Entre os casos de chikungunya, 21.336 pacientes foram hospitalizados nesse período. Destes, 1.044 morreram em até 84 dias após o início dos sintomas, sendo 728 mortes diretamente atribuídas à infecção. Já entre os episódios de dengue, 455.899 resultaram em internação e 12.969 evoluíram para óbito, sendo que 77% dessas mortes foram causadas pela própria doença.
Anos de vida perdidos
Mas é ao medir os chamados anos de vida perdidos (YLL, na sigla em inglês) – indicador que compara a idade da morte com a expectativa média de vida – que o estudo mostra com mais clareza o peso social dessas infecções. No geral, cada morte por chikungunya resultou em 16 anos de vida perdidos. No caso da dengue, a média foi de 14,5 anos.
Agora, quando o recorte é feito por raça, etnia e região, o cenário ganha outras proporções:
- Pessoas negras que morreram de chikungunya perderam em média 22 anos de vida;
- Indígenas vítimas da dengue perderam 22,5 anos;
- No Norte do país, mortes por chikungunya ocorreram 22,1 anos antes do esperado;
- No Nordeste, a dengue causou mortes em média 19,8 anos mais cedo;
- Já entre a população branca, os números foram menores, mas ainda significativos: 13 anos perdidos com chikungunya e 12,6 com dengue.
“O que mais nos chamou a atenção foi, de fato, a visualização da desigualdade na forma como essas doenças matam no Brasil”, afirma o pesquisador da Fiocruz-Bahia e autor do estudo, Thiago Cerqueira Silva. “Ao analisar os dados, vimos que a idade da morte e os anos de vida perdidos variam drasticamente dependendo da cor da pele da pessoa e de onde ela vive. Por exemplo, embora o Sudeste tenha o maior número de casos de dengue, são as populações do Norte e Nordeste que morrem mais jovens por essas doenças.”
Mortes precoces
Para entender melhor como as desigualdades entram nessa conta, os pesquisadores também compararam a idade média das mortes em regiões com maior e menor presença de pessoas negras, pardas e indígenas:
- Nas cidades com mais pessoas desses grupos, quem morre de chikungunya morre, em média, 24 anos mais cedo;
- No caso da dengue, a diferença é ainda maior: quase 28 anos.
Além disso, quando comparado a municípios de maioria branca, o risco de morrer precocemente nessas regiões é 52% maior com chikungunya e 62% maior com dengue.
O perfil das mortes e hospitalizações
Os grupos mais vulneráveis às formas graves de dengue e chikungunya são bem definidos: crianças menores de 1 ano, idosos a partir dos 70, homens e pessoas com doenças crônicas como diabetes, problemas nos rins, no fígado, doenças autoimunes e hipertensão.
No caso da dengue, o risco de morte vai aumentando conforme a idade avança, especialmente a partir dos 40 anos. E a cada nova década de vida, o risco sobe. Já na chikungunya, apesar do número absoluto de mortes ser menor, quem mais perdeu anos de vida proporcionalmente foram as crianças com menos de 10 anos.
Outro dado que chama atenção é o tempo entre o início dos sintomas e o óbito. No caso da chikungunya, cerca de 90% das mortes aconteceram até o 49º dia. Com a dengue, esse pico ocorreu por volta do 35º dia.
Gargalos
Hoje, o Brasil já tem vacinas licenciadas tanto para dengue quanto para chikungunya. O problema é que a cobertura ainda é limitada, restrita a faixas etárias específicas e sem atingir toda a população vulnerável. Além disso, não há antivirais específicos aprovados para o tratamento dessas infecções. Ou seja, o cuidado se resume a suporte clínico, ou seja, tratamento dos sintomas.
Outro obstáculo apontado pelos pesquisadores é a dificuldade no diagnóstico. Como os sintomas são semelhantes, casos de chikungunya muitas vezes são registrados como dengue, o que atrasa a identificação de surtos e compromete a resposta do sistema de saúde.
“Perder 22 anos de vida por doenças como dengue e chikungunya indica que pessoas jovens, entre 40 e 50 anos, morreram por essas infecções, o que não é esperado”, afirma Cerqueira Silva. Segundo ele, a idade média das pessoas que morreram por essas doenças também ajuda a dimensionar o cenário. Na região Nordeste, por exemplo, a média de idade das vítimas de dengue foi de 44 anos, enquanto no Sudeste foi de 63 anos. “Essa diferença sugere que o acesso ao tratamento pode não estar chegando a tempo em todas as regiões do país.”
Para os autores, enfrentar o impacto dessas doenças requer mais do que combater o mosquito. É preciso priorizar a vacinação e a prevenção em grupos vulneráveis, melhorar a formação dos profissionais de saúde, investir em infraestrutura e garantir o acesso a serviços nas regiões mais afetadas. “Reduzir o impacto da dengue e da chikungunya passa por muito mais do que combater o mosquito. É preciso enfrentar as condições que tornam algumas vidas mais curtas que outras.”