Diagnóstico na palma da mão
Os programas de smartphone que oferecem exames de laboratório levantam uma questão: um dia os profissionais de saúde serão obsoletos? Provavelmente não

Como vivíamos antes do recente salto tecnológico, ancorado na internet? É difícil lembrar. Em quase todos os campos da sociedade, mas especialmente no comércio, nas instituições financeiras e na mobilidade urbana, o smartphone teve o tamanho de uma revolução. Faltava um salto triplo carpado na área de saúde. Não mais. Até o fim do ano, a nova versão do Apple Watch, o relógio inteligente da empresa criada por Steve Jobs, oferecerá um eletrocardiograma portátil, por meio de um sensor que lê os sinais elétricos do coração. O lançamento foi classificado pela imprensa americana como um dos “desenvolvimentos mais significativos em aparelhos portáteis em anos”. A traquitana será capaz de detectar a fibrilação atrial, que, se não tratada, pode levar a problemas cardiovasculares graves, como a insuficiência cardíaca. Não é de hoje que a tecnologia investe em aplicativos de saúde. Há pelo menos 300 000 desse tipo para celulares. A diferença é que agora eles deixaram de ter apenas características lúdicas, como ajudar a meditar, monitorar o sono e contar passos. Entraram para uma seara sagrada na medicina, a do diagnóstico. O iQ, da americana Butterfly, recém-aprovado pela FDA, a rigorosa agência de controle de medicamentos dos Estados Unidos, permite a realização de exames de ultrassom com a reprodução da imagem na tela do celular. O programa foi criado em decorrência de um problema pessoal do presidente da empresa fabricante, Jonathan Rothberg. A filha dele sofre de uma doença rara chamada esclerose tuberosa, que leva as pessoas a desenvolver tumores pelo corpo e exige sucessivos exames. Enquanto aguardava horas esperando a filha ser submetida a ultrassons no hospital, ele se perguntou por que não havia algo mais simples e acessível.
A recomendação expressa dos criadores dos dispositivos de diagnóstico portáteis é que o paciente sempre leve os exames para a análise de um médico. Mas, como ainda é muito cedo para saber, na prática, como as pessoas vão lidar com esses programas e qual será seu impacto na medicina, inúmeras questões começam a ser postas em discussão. Não há dúvida de que o potencial de vantagens é enorme. Eles podem ter influência decisiva no tamanho das filas dos laboratórios e capacitar os pacientes a formular perguntas mais precisas e contundentes sobre a própria saúde. A facilidade no manuseio talvez permita que a ciência se torne mais efetiva no rastreamento de sintomas e, com isso, consiga revelar doenças em estágios mais precoces. Uma intervenção médica no tempo ideal é capaz de salvar vidas. Estima-se que, se a medicina tivesse acesso ao histórico de todos os pacientes do mundo, seria possível reduzir em 20% a mortalidade global.
Essa facilidade, no entanto, também deverá trazer problemas. “O excesso de informações produz, paradoxalmente, a desinformação e dificilmente resulta em um conhecimento estruturado e útil”, afirma o médico Eduardo Juan Troster, professor de humanidades do curso de medicina da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein, em São Paulo. Há ainda o risco de overtreatment — ou seja, há perigo de intervenções desnecessárias, atreladas à preocupação excessiva.
A autonomia dos pacientes em relação à própria saúde começou a ser discutida no século passado, quando os tribunais americanos passaram a interpretar os casos de intervenção no corpo de um paciente sem seu consentimento como violação do direito à autodeterminação. Daí nasceu a obrigatoriedade da aprovação para cirurgias. Agora, na era da internet, o salto foi gigantesco, com a disseminação do conhecimento de doenças e os novíssimos testes de bolso. Com os aplicativos, os doentes conseguem usar o conhecimento pescado na internet de forma prática. Diz Scott Gottlieb, diretor da FDA: “Queremos que os criadores de softwares desenvolvam tecnologias inovadoras capazes de ajudar o consumidor a controlar a própria saúde”.
A figura do médico, no entanto, dificilmente será descartada. “O conhecimento do profissional é essencial para ajudar a separar as informações relevantes daquelas sem embasamento científico”, afirma Troster. E mais: o papel do profissional de saúde não é apenas de curador de doenças, mas também de cuidador. Isso contempla acolher o paciente com respeito e confortá-lo nas suas angústias e medos num momento em que se encontra particularmente fragilizado. Não há aplicativo que consiga fazer isso — ainda.
Publicado em VEJA de 31 de outubro de 2018, edição nº 2606