Para quem já viveu dias de repressão e perseguição brutal, a Cannabis respira outros ares, bem mais livres, ao menos nos Estados Unidos, a nação que, até outro dia mesmo, nos anos 1970, deflagrara imensa guerra contra as drogas. O aumento na demanda pela planta para fins recreativos e medicinais e a pressão dos eleitores por mudanças no acesso obrigaram os governos estaduais a rever o assunto, legalizando, em maior ou menor grau, o porte, o consumo e a venda da maconha e de seus derivados. Em virada histórica e ruidosa, o uso frequente de maconha ultrapassou o de bebidas alcoólicas entre os americanos (veja no quadro).
Caixa de ressonância dos humores globais, os EUA viram a situação da Cannabis se transformar efetivamente a partir de 2012, quando os estados de Washington e Colorado aprovaram o consumo individual e abriram caminho para que metade dos cinquenta estados seguisse o mesmo rumo. No mês passado, o Departamento de Justiça, buscando se aproximar de boa parte da opinião pública, propôs reclassificar a maconha de substância de alto risco para baixo risco, sendo agora equiparada a anabolizantes, e não mais à heroína, por exemplo. Em paralelo, decola o mercado de produtos e derivados da erva, sobretudo os com alta concentração de THC, o componente por trás do efeito psicoativo — o “barato”. O ingrediente já aparece incorporado a chocolates, balas e bebidas, sem uma regulamentação específica, o que preocupa especialistas pelo acesso descontrolado a grupos de maior risco para os impactos nocivos do THC.
Sem contar as aplicações medicinais em alta — com outro componente da planta, o CBD, à frente —, o mercado recreativo nos EUA representa hoje 56% das vendas globais de Cannabis regulamentada. Trata-se de um setor que deve movimentar 32,4 bilhões de dólares neste ano, 3 bilhões a mais do que em 2023. Em Nova York, as fachadas de estabelecimentos localizados em endereços elegantes, como a Quinta Avenida, celebram em cartazes a abertura de lojas especializadas. Atualmente, o número de dispensários de maconha supera o de lojas do McDonald’s — são 15 000 ante 13 500, segundo o Pew Research Center. Nesse contexto, e convém por isso detalhá-la, causou interessado espanto a pesquisa que apontou o avanço dos cigarros e o recuo dos copos. O trabalho, liderado pelo professor de políticas públicas Jonathan Caulkins, da Universidade Carnegie Mellon, traçou o padrão de consumo dos americanos nos últimos 43 anos. Até 1992, a tendência de uso de Cannabis foi de leve declínio, depois de recuperação e, a partir de 2008, de crescimento substancial, o ponto ao qual chegamos.
O pico se deu em 2022, com o registro de 3 milhões a mais de usuários frequentes em relação ao de consumidores de álcool. Pelos cálculos de Caulkins, os americanos bebem, em média, de quatro a cinco dias por mês, enquanto consomem maconha de quinze a dezesseis dias no período. “O aumento na constância é perceptível nas ruas e no meu consultório”, diz a psicóloga Ilana Pinsky, pesquisadora da Fiocruz que mora em Nova York. A exemplo de outros especialistas em dependência, ela se preocupa, contudo, com as formas de uso e abuso da marijuana.
Afinal, maconha faz bem ou faz mal? Como toda substância com propriedades psicoativas, ela pode trazer benefícios, mas também causar danos. Depende da dose, da composição, da maneira que é ingerida e até da genética do indivíduo. “Um produto com alta concentração de THC pode ser prazeroso para uma pessoa e levar outra a um surto psicótico”, afirma o neurocientista Sidarta Ribeiro, autor de As Flores do Bem: a Ciência e a História da Libertação da Maconha (Fósforo). Raciocínio parecido pode se aplicar ao álcool, um aditivo social capaz de resultar em vício, doenças como cirrose e comportamentos violentos — e já abundam estudos atestando seu lado nefasto. “No caso da maconha, deveria haver uma regulação para proteger os grupos de risco”, diz Ribeiro, em referência a adolescentes e pessoas com alguma restrição médica. As campanhas informativas podem inspirar-se em iniciativas bem-sucedidas no Brasil, como a Lei Antifumo de 2014, que, ao obrigar os maços de cigarro a virem com o alerta de malefícios, diminuiu em 30% o número de tabagistas.
O maior dilema na expansão do mercado recreativo reside na falsa sensação de segurança que qualquer pacote ou produto de maconha pode ostentar. “A diminuição da percepção de risco é um problema muito maior para os mais jovens do que para os mais velhos, que entendem melhor o que acontece”, diz Andrea Galassi, coordenadora do Centro de Referência sobre Drogas e Vulnerabilidade da Universidade de Brasília. Hoje se sabe que, ao contrário do mito propagandeado há décadas, a Cannabis não mata neurônios. Ao contrário, pode estimular o surgimento e a conexão de novas células nervosas em adultos. No entanto, é contraindicada a menores de 21 anos, o público que, após os primeiros e corriqueiros contatos, tem maior propensão a desenvolver dependência e transtornos mentais com base genética sujeitos a gatilhos externos, caso da esquizofrenia. A ideia contraria o senso comum e as cenas da vida real, mas está amparada em evidências científicas.
Da mesma forma, é preciso fazer evaporar tabus e equívocos que não contribuem para uma discussão assertiva, como o próprio chavão de que maconha lesa o cérebro, fruto de um experimento com macacos malconduzido no início dos anos 1970, que caiu como uma luva para o presidente americano Richard Nixon desatar o combate às drogas. “Maconha não mata neurônio. Se pararmos para pensar, fumar até alecrim faz mal”, diz o neurocirurgião e pesquisador Pedro Pierro.
No Brasil, o uso recreativo é ilegal e está fora da pauta do Legislativo, que trabalha no sentido oposto. Neste ano, o Senado aprovou uma PEC que criminaliza a posse de qualquer quantidade de droga ou entorpecente “sem autorização ou em desacordo com a determinação legal”. A medida foi vista como resposta aos esforços do Supremo Tribunal Federal (STF) para definir critérios que diferenciem traficantes e usuários. Uma das propostas apresentadas pela Corte estabelecia o limite de 25 a 60 gramas de maconha ou seis plantas — atualmente, é o juiz que decide a quantidade a distinguir os dois grupos. Os ministros querem mudar a forma de aplicar a Lei Antidrogas, que poderia ser mais democrática e menos refém de um viés social, que tende a encarcerar mais pessoas de baixa renda e escolaridade. Outras nações se abriram para o debate e a legalização, e as mudanças na sociedade americana espelham um movimento que ganha corpo e voz no Brasil, muito embora a bebida alcoólica ainda impere nestas terras. Resta saber como as autoridades reagirão a uma querela que ainda vive em meio à cortina de fumaça.
Publicado em VEJA de 7 de junho de 2024, edição nº 2896