Especialistas estabelecem novo limite para níveis de ácido úrico no organismo
Trata-se de um passo decisivo na contenção das dores nas articulações causadas por uma doença milenar
Suas marcas foram encontradas nos pés de múmias egípcias com mais de 4 000 anos de idade. E a descrição remonta a textos deixados por gregos e romanos, com destaque para as obras dos precursores da medicina ocidental, Hipócrates (460 a.C.-377 a.C.) e Galeno (129 d.C.-216 d.C.). A dor lancinante e a peculiaridade de atacar os que podiam se deleitar com banquetes e os prazeres de Baco, o deus do vinho, vincularam a doença a reis e nobres. Fora os monarcas medievais, figuras históricas como Cristóvão Colombo (1451-1506) se queixaram das agruras da gota, uma inflamação nas articulações provocada pelo acúmulo de cristais de ácido úrico. Hoje bem mais tristemente democrática, ela afeta ao menos 2% da população adulta, prevalência que galga degraus se a vítima for homem e estiver acima dos 50 anos. Ao menos a ciência evoluiu para domá-la. Eis a proposta de uma diretriz recém-publicada pela Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR), que aponta um novo limite, ainda mais preciso, para os níveis de ácido úrico no sangue, a fim de podar o incômodo que pode resultar na deformação das juntas.
A hiperuricemia, fenômeno que semeia as crises, ocorre em um intricado processo que envolve o metabolismo das purinas, moléculas existentes no DNA e no RNA, e que fazem parte de alimentos, sobretudo carnes vermelhas, miúdos, frutos do mar e refrescos açucarados, além de estarem presentes em bebidas alcoólicas (fermentadas ou destiladas) e em alguns medicamentos, como diuréticos. Em pessoas saudáveis, com uma rotina equilibrada e sem propensão ao quadro, o organismo trata de eliminar o excesso. Nos pacientes com gota, porém, o ácido úrico fica retido e começa a se depositar em tecidos como os rins, a pele e as articulações, onde causa a pane inflamatória e dolorosa. Nas crises, o incômodo se deve ao fato de que a substância se cristaliza como agulhas que atormentam o dedão do pé, o tornozelo ou o cotovelo.
Após décadas de estudos, hoje o controle do problema é feito com medidas e remédios para reduzir a produção do ácido úrico ou incentivar seu expurgo. Contudo, ele continua sendo uma pedra no sapato de pacientes e médicos. “Essa estratégia é teoricamente perfeita. Mas no dia a dia o resultado é péssimo”, afirma o reumatologista Geraldo Castelar, membro da SBR e um dos autores do documento. Para piorar, a maioria dos pacientes é do sexo masculino, população conhecida por ir menos aos consultórios e não aderir com afinco a tratamentos e mudanças no estilo de vida. “Apenas a crise aguda é tratada, e não a causa da gota”, diz Castelar.
O gargalo está em fazer o controle antes que os ataques prejudiquem as juntas. Castelar e outros pesquisadores brasileiros se aprofundaram nos níveis séricos de ácido úrico da população em geral, índice que varia de 3,4 a 7 mg/dL, e, com base na literatura científica sobre o tema, elaboraram a diretriz que passa a indicar a marca de 6 mg/dL como o nível a não ser ultrapassado por pessoas com histórico de gota. A meta será descrita no laudo dos exames de sangue nos laboratórios.
Apesar de seus efeitos serem retratados há milênios, a hiperuricemia bebe da fonte de condições e hábitos típicos da vida moderna, como obesidade, sedentarismo, dieta inadequada, colesterol alto… “O metabolismo da população piorou muito e o valor do ácido úrico reflete isso”, diz Castelar. As crises de gota, que chegam a durar dez dias, podem ser, assim, a ponta do iceberg de um processo sistêmico capaz de abalar da saúde renal à cardiovascular.
Ter noção do índice a ser mantido pode mudar a rotina de profissionais, pacientes e familiares, que terão ao alcance das mãos um marcador de quando será necessário intervir e iniciar as medicações antes de penar com os sintomas. É algo que já ocorre em outras circunstâncias. “Bons exemplos são os níveis de colesterol, glicemia e hemoglobina glicada. O paciente presta atenção para chegar ao nível recomendado”, afirma o patologista Luís Eduardo Coelho, da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica/Medicina Laboratorial, que também assina a diretriz. “O valor é objetivo e tende a levar a um comportamento virtuoso.” Nesse sentido, com informação e um plano de ação, as dores e deformações que tanto afligiram a humanidade podem se tornar, quem sabe, um capítulo do passado.
Publicado em VEJA de 20 de setembro de 2024, edição nº 2911