Estudos revelam que vacinas podem nos proteger da principal causa de morte da atualidade
Imunizantes já podem ser vistos como um quarto pilar na prevenção de infartos e AVCs, ao lado do controle do colesterol alto, da hipertensão e do diabetes

Depois de uma pandemia aterradora, da qual nos salvamos com o desenvolvimento rápido e a aplicação em massa de imunizantes, um fantasma ainda assombra a aceitação e a adesão às vacinas: as supostas reações adversas. A hesitação e o temor bebem de dados mal interpretados e, claro, das fake news. Mas há, sim, um tremendo efeito colateral das doses contra gripe, covid-19 e companhia — e ele é extremamente bem-vindo. Para além da proteção contra as infecções em si, as vacinas são um dos maiores escudos da medicina moderna diante das doenças cardiovasculares. É o que atesta um robusto consenso recém-apresentado no congresso da Sociedade Europeia de Cardiologia, que reuniu em Madri, na Espanha, mais de 33 000 especialistas. O documento é categórico: os imunizantes já podem ser vistos como um quarto pilar na prevenção de infartos e AVCs, ao lado do controle do colesterol alto, da hipertensão e do diabetes. Amparando-se em dezenas de estudos, a diretriz revela que pessoas com a caderneta em dia estão menos propensas a fazer parte da trágica estatística de quase 20 milhões de vítimas fatais das doenças cardíacas por ano — elas são a principal causa de morte global.
Não se trata de impacto marginal. As evidências estão a favor de uma série de fórmulas, sobretudo a que combate a gripe, cujos índices de vacinação no Brasil estão abaixo das metas entre adultos. Em um estudo controlado com mais de 2 500 pessoas que sofreram um ataque cardíaco, foi constatada uma redução de 41% na mortalidade e de quase 30% no risco de novos eventos cardiovasculares no grupo dos pacientes que foram imunizados contra o vírus influenza. A vacina de covid-19 também reforça a defesa do peito. Um levantamento com dados de 800 000 cidadãos revela que as injeções, tão atacadas por negacionistas, realmente levaram a menos casos de infarto, trombose e sangramento cerebral. Embora tenham circulado notícias falsas sobre a relação das novas vacinas com uma inflamação do músculo cardíaco (a miocardite), o fato, consolidado, é que esses episódios são raríssimos e os casos desse revés no coração são seis vezes mais frequentes entre pessoas infectadas pelo novo coronavírus do que entre as imunizadas.
De início, a relação entre a proteção contra vírus e bactérias e o bem-estar das artérias pode soar estranha, mas uma pequena aula de biologia ajuda a vislumbrar de onde vem o efeito colateral positivo. Quando um patógeno agride o corpo humano, uma série de reações é disparada, entre elas um tenso processo inflamatório que, se por um lado combate os micróbios, por outro expõe os vasos sanguíneos a obstruções por placas e trombos e ainda pode desregular os batimentos cardíacos. Ou seja, a invasão viral ou bacteriana, além de aprontar no sistema respiratório e em outros cantos, arma um estresse na circulação — algo particularmente perigoso para o coração e o cérebro. “As infecções aumentam o risco de doenças cardiovasculares e nós vimos isso de forma dramática durante a pandemia de covid-19 com as diferentes formas de complicações vasculares”, diz a cardiologista Bettina Heidecker, chefe do Serviço de Insuficiência Cardíaca e Cardiomiopatia do Hospital Universitário Charité, em Berlim, e uma das autoras do consenso europeu. Assim, ao mesmo tempo em que combatem essas infecções com enorme potencial de risco, os imunizantes funcionam como um escudo para o coração.

Os novos estudos comprovaram essa dupla função com vários exemplos. Fora os serviços prestados pelos imunizantes contra influenza e covid-19, no congresso sediado em Madri foi publicada a primeira revisão da literatura científica a apontar que a vacina para herpes-zóster também resguarda o peito. O trabalho registrou que seu uso está associado a uma redução de 18% nos casos de AVC e infarto entre adultos jovens e de 16% na população acima de 50 anos. Na lista de vacinas amigas do coração, também já marcam presença as doses contra o vírus sincicial respiratório (VSR), por trás da bronquiolite, o papilomavírus humano (HPV) e bactérias como o pneumococo, que deflagram pneumonia. “Uma diminuição de 20% ou 30% no risco cardiovascular pode até parecer pouco, mas é muito, e é comparável ao efeito de alguns tratamentos contra os fatores de risco cardíacos”, diz a infectologista Elisabeth Botelho-Nevers, professora do Hospital Universitário de Saint-Étienne, na França.
Mesmo com a ciência do lado das vacinas, perpetua-se o desafio de fazer os cidadãos, sobretudo os adultos, se imunizarem. A falsa impressão de pouca vulnerabilidade, somada à desinformação plantada por grupos antivacina, derrubou a manutenção das coberturas em diversos países, inclusive o Brasil. E, quando se achava que, na esteira da pandemia, os rumos se acertariam, novas guerras contra os imunizantes são mobilizadas por forças políticas. O gritante epicentro do problema são os Estados Unidos. Desde que Robert F. Kennedy Jr., um conhecido “antivax”, assumiu o posto de secretário de Saúde, uma série de ações que comprometem a proteção da população contra infecções potencialmente fatais foi desencadeada. No mês passado, o Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA cortou cerca de 500 milhões de dólares em investimentos para o desenvolvimento de vacinas de RNA mensageiro, tecnologia empregada na vacina contra a covid-19, laureada com o Nobel de Medicina em 2023.

Uma arriscada reação em cadeia já teve início com o recente anúncio de que o estado da Flórida pode se tornar o primeiro a banir a exigência de vacinação, inclusive para crianças em idade escolar. Isso em meio à alta de casos de sarampo. As consequências dessas articulações poderão ser devastadoras. “Vai chegar um momento em que só o retorno dessas infecções em larga escala poderá ser o freio para essas políticas”, afirma o pediatra e infectologista Renato Kfouri, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm). O Brasil não está à margem das ameaças. Por outras razões — inclusive a carência de informação e acesso —, estima-se que a cobertura da vacina da gripe para o público-alvo nacional não tenha passado de 50% neste ano. Essa população descoberta é a mesma que está mais suscetível às intempéries cardiovasculares. “Vírus funcionam como gatilhos ou precipitadores de doenças sérias. É por isso que a vacinação tem um peso não só na saúde coletiva mas também na individual”, ressalta Kfouri.
Aliás, os efeitos colaterais positivos das vacinas nem sequer se restringem aos domínios do coração. Uma equipe de pesquisadores da Universidade Stanford, nos EUA, observou que a vacina contra o herpes-zóster está associada a uma redução de 20% no risco de desenvolvimento de demências como o Alzheimer. Os achados do estudo foram surpreendentes: sete anos após a imunização, hoje preconizada a pessoas acima de 50 anos, um em cada oito indivíduos não vacinados desenvolveu demência. Nos vacinados, o índice foi um quinto menor. Essa é uma vacina em processo de incorporação na rede pública brasileira que deve chegar ao SUS no ano que vem, mas vale lembrar que outros imunizantes também relevantes já são ofertados gratuitamente nos postos do país — a lista inclui gripe, covid, sarampo e hepatite B, entre outros.
O evento científico em Madri marca uma virada de chave global no entendimento de que, muito além do controle de patógenos, as vacinas se somam às medidas de dieta equilibrada, atividade física e combate ao tabagismo no panteão de estratégias comprovadamente eficazes na prevenção das doenças crônicas. O coração e o cérebro agradecem. Resta a cada um de nós ter consciência e, imunizados contra a desinformação, buscar completar nossa caderneta vacinal.
Publicado em VEJA de 12 de setembro de 2025, edição nº 2961