Há anos desafiando diagnósticos, fibromialgia é finalmente reconhecida como deficiência no Brasil
Trata-se de sinal de legítimo respeito aos pacientes

A partir dos anos 1990, nos Estados Unidos, uma promessa médica se transformou em crise de proporções calamitosas. O OxyContin, analgésico da família dos opioides, criado pela farmacêutica controlada pela família Sackler, foi lançado como solução revolucionária para o controle da dor — tema que, àquela época, permanecia relegado a um segundo plano na medicina. Vendido como um elixir capaz de aliviar desde pontadas leves até as mais intensas, seguia a lógica simples da “escala analgésica”: quanto maior o incômodo, mais potente deveria ser o fármaco. A fórmula parecia irrefutável, mas se revelou catastrófica. Décadas depois, a dependência de opioides já matou mais de meio milhão de americanos, expôs as práticas agressivas da indústria farmacêutica e deixou um alerta incômodo: as dores são diferentes, e tratá-las como se fossem iguais é armadilha perigosa.
Hoje sabe-se que cada tipo de dor tem sua própria história, causa e tratamento. Mas no caso da fibromialgia — que atinge de 2% a 4% da população mundial, incluindo cerca de 6 milhões de brasileiros — muitos desses pontos ainda são um mistério. É uma dor crônica, difusa, que não aparece em exames como a ressonância magnética, não deixa cicatrizes visíveis, não se mede com precisão, mas pode ser incapacitante. “Mesmo as causas são uma incógnita”, diz Gabriel Kubota, coordenador do Centro de Dor da Faculdade de Medicina da USP. “Temos as peças do quebra-cabeça, mas ainda não sabemos montá-lo.”

A novidade, que pode abrir uma nova estrada de investigação e zelo: o governo acaba de anunciar o reconhecimento oficial da fibromialgia como deficiência, prometendo atendimento especializado pelo SUS a partir de 2026. É decisão a ser celebrada, mas há poréns. Os principais nós: o tratamento de primeira linha não deve ser farmacológico e, sim, de reabilitação, atividade física supervisionada, inserção social e combate ao estigma. E, no sistema público, infelizmente, tal conjunto de posturas é complexo. Tem-se as portas abertas para os medicamentos, mas não para uma abordagem preliminar. Dito de outro modo: trata-se de empurrar remédios, em um país em que a cultura para tratar males do organismo está ainda amparada em uma resposta “farmacocêntrica”.
O reconhecimento da fibromialgia como deficiência, no entanto, é benefício inegável. “Mais decisivo que o carimbo de deficiência, porém, é criar linhas de cuidado específicas”, diz Kubota. O caminho do bom senso é tentar abandonar a ideia de químicos como a única saída — que resultou no drama americano, insista-se — e apostar em acompanhamento. Os médicos já compreendem que alterações neurológicas, especialmente nas redes neurais responsáveis pelo processamento da dor, podem levar o paciente a reagir de forma exagerada ou inadequada a estímulos dolorosos, mesmo na ausência de lesão. Não para por aí: uma propensão maior a problemas musculares e patologias nos tendões também integra essa equação. Além disso, a influência genética e gatilhos estressantes ou infecciosos, como o vírus da covid-19, vêm sendo estudados, embora ainda não haja consenso definitivo. “Tudo indica que se trata de uma doença multifatorial”, diz José Eduardo Martinez, presidente da Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR).
Sem lesões evidentes, a fibromialgia carrega consigo um estigma secular que provoca ceticismo até mesmo entre profissionais da saúde. Durante muito tempo, ela foi vista como “coisa da cabeça” ou confundida com depressão e ansiedade. Persistem relatos de pacientes — em sua maioria mulheres, que correspondem a sete a nove em cada dez diagnósticos — que ouvem qualificativos como “mimimi” ou “exagero”. Investigações demonstram que essas pacientes têm 10% menos probabilidade de ter sua dor legitimada por médicos; e 17% relatam experiências como o chamado gaslighting médico, quando o profissional desacredita ou invalida o relato.
Na compreensão da fibromialgia, enfim, nem tudo são sintomas: é imprescindível descartar outras patologias (visto que até certos medicamentos podem mimetizar sintomas similares) e dispor da perícia para distinguir quadros leves dos severos — limite que supera a simples escala numérica de dor e exige uma investigação minuciosa. Fazer uma análise aprimorada, contudo, colide com um desafio global: a escassez de especialistas em dor. Na graduação de medicina, o tempo dedicado a esse tema é, em média, de apenas 0,5% da carga horária. Mesmo nas residências médicas o assunto é pouco ou mal abordado. Individualmente, a experiência da dor pode variar muito: uma pessoa pode chorar, enquanto outra pode ficar sentada, imóvel, sem demonstrar nada. “Não dá para saber quem está sentindo mais. Essa subjetividade torna a medição da dor um dos desafios mais complexos para a medicina”, diz Martinez, da SBR. Na fibromialgia, enfim, a dor não é consequência — ela é a doença em si. É fundamental, portanto, olhá-la com atenção até agora negligenciada, por desconhecimento.
Publicado em VEJA de 15 de agosto de 2025, edição nº 2957