Inédito: fígado suíno geneticamente modificado é usado em transplante humano
Experimento em indivíduo com morte cerebral demonstrou que órgão é funcional, abrindo caminho para redução das filas de transplante

O fígado é o segundo órgão mais requisitado nas filas de transplantes em todo o mundo, mas apesar das campanhas e da segurança da cirurgia, há uma escassez de doadores. Para tentar resolver esse problemas, pesquisadores buscam alternativas nos animais e, nesta quarta-feira, 26, um enorme avanço nessa área veio a público.
Na Nature, cientistas chineses relatam ter conseguido transplantar um fígado suíno geneticamente modificado em um indivíduo com morte cerebral. Ele funcionou por cerca de dez dias, produziu bile e albumina – substâncias essenciais para o bom funcionamento do corpo – e não gerou rejeição aguda.
A notícia foi recebida com entusiasmo por especialistas. “O transplante de fígado é desafiador porque o órgão produz mais de mil substâncias que podem causar rejeição”, disse Silvano Raia, responsável pelo primeiro transplante de fígado do Brasil, em entrevista a VEJA. “Esse estudo é importante porque ele é o primeiro a falar de transplante hepático nessas condições, além de demonstrar que o órgão foi capaz de produzir duas substâncias importantes que não foram rejeitadas pelo receptor.”
É importante notar que a cirurgia ainda está no início da sua fase experimental, por isso ela foi realizada em um indivíduo com morte cerebral – o limite de dez dias de experimento foi definido pela família. Outro detalhe importante é que o órgão geneticamente modificado foi instalado com um fígado auxiliar, ou seja, o órgão do paciente não foi removido, de modo que os dois permaneceram funcionando ao longo dos dez dias.
Por que as modificações genéticas são necessárias?
A rejeição é uma das principais dificuldades de um transplante. Isso acontece porque cada indivíduo – humanos ou animais – produzem substâncias que sinalizam ao sistema imunológico que aquelas células são seguras. Quando o órgão de outra pessoa ou espécie é inserido, o corpo não reconhece os marcadores de segurança e começa a agir para destruir aquelas células.
Quando a doação é realizada entre humanos, é possível procurar indivíduos com marcadores parecidos, o que, associado a medicamentos que inibem o sistema imune, fazem com que o órgão não seja rejeitado. No caso dos animais, isso não é possível e, por isso, as modificações genéticas são importantes.
E essa possibilidade, de fato, tem gerado uma revolução. A ideia de realizar xenotransplantes (quando o transplante é realizado entre espécies diferentes) já existe desde o século XVII, mas apenas nas últimas décadas ela se tornou possível. E o trabalho dos pesquisadores chineses evidencia a importância e os desafios desse processo.
Utilizando a técnica de CRISPR/Cas9, os pesquisadores excluíram três genes que produziam os marcadores suínos que causariam rejeição e inseriram dois genes que facilitam a aceitação pelo sistema imune e inibem a coagulação sanguínea que poderia danificar o fígado transplantado. “Essa foi uma grande conquista”, disse Lin Wang, coautor do estudo e professor da Quarta Universidade Médica Militar da China, em coletiva de imprensa. “A cirurgia foi muito bem sucedida.”
Quais os desafios?
Apesar das modificações genéticas, os pacientes ainda precisam ser submetidos ao uso de imunossupressores muito fortes para que o órgão não seja rejeitado. Isso acontece porque as modificações ainda são muito pontuais e não impedem que outras moléculas sejam reconhecidas como impróprias pelo sistema imune.
Esse também é um desafio no caso de outros órgãos. Corações e rins de animais geneticamente modificados têm sido testados em humanos, com alguma taxa de sucesso, mas ao longo do tempo, apesar da remoção desses marcadores, os órgãos ainda apresentam sinais de rejeição crônica a longo prazo, o que pode levar à necessidade de novas cirurgias.
“Teoricamente, o ideal seria o quimerismo, fenômeno em que, do ponto de vista genético, o órgão é tanto suíno e quanto humano”, afirma Raia. “Isso, contudo, ainda não foi alcançado pela ciência.”
Há ainda uma outra preocupação. “O risco de infecções de animais para humanos não pode ser completamente descartado”, afirmou a VEJA Peter Cowan, especialista em transplantes da Universidade de Melbourne, na Austrália. “Porém os porcos doadores serão mantidos em instalações especializadas passarão por triagens muito rigorosas para garantir que seus órgãos não carreguem microorganismos que possam potencialmente infectar e causar danos aos receptores. Além disso, os receptores e seus contatos próximos serão monitorados de perto para quaisquer sinais de infecção.”
Os porcos são os animais preferidos para alguns motivos bastante convenientes. O primeiro é anatômico. Os suínos tem um corpo muito parecido com o humano, seja no tamanho dos órgãos, seja no diâmetro dos vasos, o que facilita o “encaixe” na hora do transplante. Além disso, a modificação genética desses animais pode ser realizada com facilidade e já há protocolos e instalações que possibilitam a produção em massa desses animais.
Apesar dos dilemas éticos – há quem diga ser irresponsável, perigoso e cruel modificar permanentemente e sacrificar animais em benefício da humanidade –, reside no xenotransplante uma esperança para a medicina. Isso acontece porque os transplantes só ocorrem quando nenhuma outra alternativa de tratamento é viável. Só no Brasil, há mais de 45,5 mil pessoas esperando por um órgão, 2,4 mil aguardando uma doação de fígado. Aos poucos, com responsabilidade e paciência, a ciência evolui para reduzir o tamanho desse problema.