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Jovens misturam Venvanse e estimulantes para viver ‘modo turbo’ de produtividade; veja riscos

Medicamento indicado para TDAH tem sido desviado da finalidade por quem busca driblar cansaço, cumprir prazos ou até prolongar a energia em festas

Por Victória Ribeiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 9 jul 2025, 15h57 - Publicado em 8 jul 2025, 15h18

Bastam cinco minutos de rolagem nas redes sociais para esbarrar em relatos sobre o uso de Venvanse — não de pacientes diagnosticados com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), sua indicação principal, mas de pessoas que enxergam no medicamento um atalho para viver em ‘modo turbo’. Há quem justifique o uso para driblar o cansaço, acelerar os estudos, cumprir prazos no trabalho, dar um gás nas tarefas domésticas, esticar a noite na balada ou até funcionar como “pré-treino” na academia. O uso indiscriminado muitas vezes envolve altas doses e o consumo combinado com outros estimulantes, como cafeína e energéticos, o que aumenta os riscos associados ao uso fora das indicações médicas.

Feito à base de lisdexanfetamina, derivado da anfetamina e estimulante do sistema nervoso central, o Venvanse age como uma espécie de “botão de ligar” para dopamina e noradrenalina, neurotransmissores diretamente ligados à motivação, foco e energia. Em pessoas com TDAH, esse mecanismo reequilibra uma disfunção cerebral comprometida. Ou seja, nesses casos, não é um estímulo exagerado nem fora de contexto, mas parte do tratamento de um transtorno neurobiológico com evidências científicas e de segurança.

Mas, fora da indicação terapêutica, a história muda de tom. A mesma ação cerebral que melhora a atenção em quem tem TDAH pode provocar uma espécie de euforia funcional em quem busca performance. E esse desvio de finalidade pode virar um ‘tiro no pé’. Nesses casos, há risco de dependência e uma série de potenciais impactos na saúde. Não à toa, o medicamento é classificado como de controle especial pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

“O que a gente vê é um mercado paralelo em expansão”, afirma Rodrigo Bougleux, presidente do grupo de estudos em cardiologia do esporte da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC). “Tem gente que consegue receita com médicos coniventes, outros usam prescrições antigas, compram de terceiros ou adquirem versões falsificadas pela internet.”

Foco, performance e emagrecimento

Entre os que recorrem ao medicamento, jovens adultos entre 20 e 35 anos são os mais frequentes, muitas vezes pressionados por prazos apertados. “É comum ouvirmos: ‘o trabalho já chega com o prazo vencido’”, relata o cardiologista Silvio Reggi, assessor científico da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp).

Muitos desses pacientes não procrastinam por escolha, mas operam sob exigências que, segundo eles, são impossíveis de cumprir com o corpo cansado. “A pessoa diz: ‘Se eu dormir hoje, não entrego’. Então, recorre ao remédio.” Há também aqueles que vivem em estado de autoexigência, querendo surpreender e se superar o tempo todo.

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Os vestibulandos – muitas vezes menores de idade – e os concurseiros também aparecem entre os usuários frequentes da substância. E há ainda quem recorra ao medicamento com finalidade recreativa, para manter a energia em festas ou dar um ‘gás’ na academia.

Além do uso para foco e performance, o uso do medicamento com o objetivo de emagrecimento estético também tem chamado a atenção dos especialistas. Embora o remédio também seja aprovado no Brasil para o tratamento do transtorno de compulsão alimentar, médicos relatam que ele tem sido indicado para pessoas sem esse diagnóstico.

“É um cenário muito específico. Nem todo paciente com excesso de peso tem compulsão alimentar, mas vemos o remédio sendo usado para emagrecer”, afirma Reggi. Embora a prescrição off-label — ou seja, fora das indicações registradas em bula — seja permitida por aqui, desde que feita por um médico, ela transfere integralmente a esse profissional a responsabilidade técnica sobre os efeitos da substância naquele paciente. “Nesse caso, não é ilegal, mas é questionável”, opina o cardiologista.

A ‘bomba’ cerebral que virou moda

Diferente de drogas ilícitas que produzem o “barato” típico de substâncias psicoativas, o Venvanse não causa euforia no sentido clássico, como uma sensação intensa de prazer, riso fácil ou alterações na percepção. “Mas ele provoca outro tipo de sensação que muita gente busca: dá sensação de produtividade, de estar desperto. É como se a pessoa estivesse muito presente ali, naquele momento, muito ligada e disposta”, explica Reggi.

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Com isso, o cérebro até pode dar um salto de produtividade nos primeiros dias de uso. A pessoa sente que estudou mais ou produziu com maior qualidade. Mas o rendimento não se sustenta com o uso inadequado. Com o passar dos dias, com o sono dando lugar a produção, o corpo e a mente entram em sobrecarga, e o desempenho começa a despencar.

“Vamos supor que uma pessoa vai à academia e faz mais exercício do que aguenta. No dia seguinte, está quebrada, mesmo tomando suplemento. Com o cérebro é parecido: ele tem capacidade de produzir, raciocinar e criar, mas isso sempre vai depender do descanso”, compara o psiquiatra Mario Louzã, coordenador do ambulatório de TDAH em adultos do Instituto de Psiquiatria (IPq) da Universidade de São Paulo.

A resposta mais comum diante dessa queda de desempenho é aumentar a dose. E aí entra um ciclo perigoso: mais remédio, mais esforço e menos descanso. Além de comprometer o rendimento, o uso prolongado afeta a consolidação de memórias, o equilíbrio emocional e a capacidade de foco a longo prazo. “Durante o sono, o cérebro organiza o que foi vivido, registra informações, se recupera. Sem dormir direito, esse ciclo não acontece e aí a conta chega”, diz Louzã.

Por trás desse mecanismo está também uma das engrenagens da dependência. O que acontece é que, uma vez experimentado o efeito do medicamento, muitos relatam uma sensação de produtividade tão acima do habitual que, ao suspender o uso, passam a se sentir incapazes. Isso pode configurar um quadro de dependência psicológica. “A referência muda. Aquilo que antes era uma performance normal, dentro dos limites humanos, passa a ser visto como insuficiente. A pessoa acha que não está rendendo, que não consegue se concentrar direito…”, explica Reggi.

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Alta performance, alto custo

Além disso, o uso indiscriminado pode causar efeitos colaterais importantes, como insônia, ansiedade, elevação da pressão arterial, alterações no ritmo cardíaco e, em casos mais graves, risco de eventos cardiovasculares potencialmente fatais. O impacto sobre o coração é uma das principais preocupações, não apenas pela gravidade desses efeitos, mas também porque muitos problemas cardíacos são silenciosos, e as pessoas podem usar a substância sem saber que já têm algum comprometimento, como a pressão alta.

Reggi lembra o caso recente de um paciente em seu consultório: um homem na faixa dos 30 anos que, em um esforço para cumprir prazos no trabalho, tomou várias doses da quantidade máxima recomendada do medicamento ao longo de 24 horas. O desfecho foi uma crise hipertensiva grave, que exigiu internação em UTI por 48 horas. “Esse paciente combinou o remédio com cafeína e energético, algo que muita gente faz, mas que forma um combo extremamente perigoso. É um estímulo excessivo, e o coração não aguenta.”

Já Bougleux conta o caso de um atleta semiprofissional, campeão sul-americano e brasileiro em sua modalidade, que usava Venvanse antes das competições, combinado a outras substâncias, muitas vezes ilícitas. “Durante um treino, ele teve uma arritmia grave. Descobrimos que ele já era hipertenso, mas ainda não havia sido diagnosticado. Esse ‘blend’ causou uma arritmia tão severa que foi necessário implantar um dispositivo eletrônico para monitoramento cardíaco contínuo.”

Quando indicado, medicamento é seguro

Apesar dos riscos associados ao uso fora da indicação médica, é importante reforçar: o Venvanse é um medicamento seguro, eficaz e importante para quem realmente tem TDAH ou compulsão alimentar, transtorno que também tem critérios diagnósticos bem definidos. Quando bem prescrito, com avaliação clínica cuidadosa e acompanhamento regular, ele pode melhorar a qualidade de vida de pacientes, especialmente daqueles que enfrentam, desde cedo, dificuldades reais de atenção, organização, regulação emocional e desempenho nos estudos ou no trabalho.

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“Existem doses certas para pessoas certas”, destaca Louzã. Segundo ele, a prescrição do medicamento exige uma investigação profunda, que inclui não apenas a escuta atenta, mas também, muitas vezes, entrevistas com familiares ou pessoas próximas, além da solicitação de exames, especialmente os cardiovasculares. No caso do TDAH, também é importante investigar se a pessoa tem apneia, um distúrbio que afeta a qualidade do sono e pode levar a sintomas semelhantes, como dificuldade de concentração durante o dia. “As doses também vão sendo monitoradas e ajustadas, de forma a não causar qualquer impacto negativo, como no sono ou falta de apetite”, explica o médico.

Como dito anteriormente, O TDAH envolve uma disfunção nos sistemas dopaminérgico e noradrenérgico, justamente os alvos da ação do medicamento. Ou seja, para quem tem o transtorno, o remédio ajuda a equilibrar algo que já está em desequilíbrio. Já em quem não tem, a medicação pode sobrecarregar circuitos que já operam de forma adequada.

“Os estudos existentes foram feitos com pessoas que realmente precisam de Venvanse. Agora, se ele não foi testado, por exemplo, em quem não tem compulsão alimentar e quer emagrecer apenas por razões estéticas, como podemos garantir que seja seguro nesse caso? Se está sendo usado por pessoas que não têm TDAH, em doses altas e ainda combinado com excesso de cafeína ou bebidas energéticas, como saber o que pode acontecer? A verdade é que a gente não consegue ter certeza. E pode ser pior do que estamos vendo”, diz Reggi.

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