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Mais Médicos: o tempo da sensatez

O mais criticado programa de Dilma mudou muito pouco, atrai cada vez mais profissionais brasileiros - mas agora deixou de provocar iras incandescentes

Por Adriana Dias Lopes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 10 dez 2018, 09h27 - Publicado em 1 abr 2017, 08h00

Desde a Revolta da Vacina, em 1904, quando parte da população carioca saiu às ruas do Rio de Janeiro com paus e pedras para protestar em barricadas contra a obrigatoriedade da imunização contra a varíola, um programa de saúde pública não provocava tanta oposição quanto o Mais Médicos, lançado em 2013 pelo governo de Dilma Rousseff. Os médicos cubanos contratados para o serviço – no começo, eles representavam mais de 80% do contingente inicial de profissionais – chegaram a ser recebidos com agressividade pelos colegas brasileiros. Os conselhos e sindicatos médicos protestaram. Um mês depois da inauguração do programa, o sanitarista cubano Juan Delgado foi chamado, aos berros, de “escravo”, ao desembarcar no aeroporto de Fortaleza, acusado de aceitar trabalho em condições desumanas. Por muito pouco não apanhou de companheiros de profissão. Nos protestos pelo impeachment, houve cartazes de repúdio ao programa. A imprensa, de modo quase unânime, também bateu firme, mergulhada no cisma que antecipava o processo de impeachment e atenta à intenção do PT de usar a iniciativa para cabalar votos.

Tudo isso agora é passado. O governo Dilma caiu, o governo Temer assumiu e manteve o Mais Médicos com poucas mudanças – e os protestos evaporaram. Em setembro de 2016, Temer anunciou a renovação por mais três anos do contrato firmado com a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), que permite o recrutamento de profissionais cubanos para o programa. Renovou porque, vencida a grita dos primeiros momentos, a iniciativa é um sucesso – tal como foi a vacinação contra a varíola no início do século XX. “O Mais Médicos tem altíssimo índice de aprovação da população assistida pelos profissionais do programa, em especial os cubanos, dedicados ao trabalho”, disse a VEJA o ministro da Saúde, Ricardo Barros. “Estimularemos a vinda de brasileiros. Mas, se por algum motivo em meio ao processo isso não der certo, recorreremos aos estrangeiros.” Uma das poucas mudanças introduzidas pelo atual governo é, de fato, o incentivo à adesão de brasileiros. Para atraí-los, estabeleceu-se, por exemplo, um reajuste de 9% na remuneração. Além disso, a maioria das vagas para brasileiros é oferecida preferencialmente nas capitais e cidades com mais de 250 000 habitantes. Dessa forma, a composição do programa mudou. Em 2014, os brasileiros representavam 16% do total de 14 000 médicos. Hoje, são quase 40% dos atuais 18 000 profissionais. Os cubanos, embora tenham perdido espaço, caindo de 80% para 57% do contingente, ainda predominam e dão o tom do programa.

O Mais Médicos exige reformas, algumas complexas, mas seu objetivo primordial tem sido cumprido: oferecer acesso a cuidados básicos de saúde onde antes não havia nada. “Na prática, graças ao programa, brasileiros que nunca tiveram um profissional da saúde que olhasse por eles em localidades remotas agora recebem atendimento médico”, diz Roberto Kalil, diretor da divisão de cardiologia do Hospital Sírio-Libanês e do Instituto do Coração, em São Paulo. De fato, os profissionais do Mais Médicos atendem em locais carentes e remotos, a centenas de quilômetros das capitais. A reportagem de VEJA percorreu 2 000 quilômetros na Bahia, o estado com o maior número de médicos do programa, depois de São Paulo. Acompanhou o dia a dia de trabalho de cinco profissionais do Mais Médicos e constatou a diferença brutal que o programa é capaz de fazer na vida de populações mais desprotegidas.

Pesquisa coordenada pela Universidade do Rio Grande do Sul em 2015 mostrou que, em um ano, houve aumento de cerca de 30% no número de consultas nos municípios que aderiram ao programa. Nas cidades em que não havia os profissionais do Mais Médicos, o crescimento foi de 15%. A quantidade de internações em hospitais, por sua vez, caiu no mesmo período (o que indica maior eficácia nas consultas). Nos municípios em que existe o programa, o número de hospitalizações foi 4% menor em relação ao de outras cidades. Em números absolutos, 110 000 brasileiros deixaram de ser internados.

Aos 77 anos, a dona de casa baiana Maria Gonçala sofre de Alzheimer. Nas últimas semanas, com o agravamento da doença, ela passou a acordar durante a noite atemorizada com a visão alucinatória de formigas invadindo sua cama. Sem dormir em decorrência do sofrimento da mãe, a aposentada Alaíde Souza dos Reis marcou uma visita domiciliar com Miguel Depallens, médico do posto de saúde do Arenoso, um dos bairros mais pobres e violentos da periferia de Salvador. Depallens, nascido na Suíça, está no Mais Médicos desde o início, em 2013. Era perto de meio-dia quando ele entrou no quartinho abafado de Maria Gonçala. A sensação térmica beirava os 40 graus. Um ventilador pequeno acomodado em uma cadeira baixinha parecia demasiadamente acanhado diante de tanto calor. Maria Gonçala estava deitada de lado, sem se mover, com os olhos parados. Depallens a segurou pelos braços e a acomodou de modo que ficasse sentada. Afagou sua cabeça, delicadamente. A mulher estendeu as palmas das mãos em sua direção. Ele as tocou, perguntando o que havia, com ligeiro sotaque. “Não tenho medo, não”, respondeu a mulher.

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A mesma frase foi mecanicamente repetida diversas vezes ao longo da consulta. Ele a examinou com o estetoscópio, auscultou seu coração, observou seus olhos, analisou um exame de imagem feito no hospital e a medicou. O suíço deixou a casa depois de quarenta minutos e voltou para o posto a pé, ladeira acima. O médico realiza de quinze a trinta consultas diárias, além das visitas domiciliares, sempre em condições precárias. No posto em que trabalha, falta água para beber. O abastecimento é feito com um galão de 20 litros a cada duas semanas. A geladeira que armazena vacinas está quebrada. Depallens soube do Mais Médicos na Suíça, por meio dos pais de sua então mulher, uma brasileira. Aderiu ao programa, depois se separou da esposa e, mais tarde, renovou seu contrato. “Quando me perguntam se sou louco por ter ficado no programa, respondo: `Aqui meu trabalho faz a diferença na vida das pessoas”.”

Depallens diz nunca ter sofrido nenhum tipo de resistência no Brasil, nem dos médicos brasileiros, muito menos dos pacientes. “Tive a sorte de não ter sido discriminado, como ocorreu, injustamente, com os cubanos”, comenta. Uma das críticas recorrentes aos cubanos está na falta de domínio do português – e os perigos atrelados a essa fragilidade nos consultórios. Diz Otto Baptista, presidente da Federação Nacional dos Médicos (Fenam), crítico de primeira hora do Mais Médicos, que, ainda hoje, tem dificuldade em encontrar méritos no programa. “Houve situações absurdas, em especial com os cubanos, em relação a prescrições médicas, por puro desconhecimento.” Em novembro de 2013, um médico cubano foi afastado do trabalho após errar na receita. O caso aconteceu em Feira de Santana, na Bahia, com a mãe de um garoto de pouco mais de 2 anos que tinha febre alta. Apesar de ter orientado corretamente a mãe de forma verbal, ele se equivocou na hora de fazer a prescrição e receitou quarenta gotas de dipirona, o dobro do indicado para a faixa etária da criança. Foi um episódio pontual, mas serviu de estandarte para os críticos do programa.

Os cubanos, de fato, têm pouco tempo para aprender o idioma. Antes de chegarem à Bahia, no início de 2014, Egly Exposito Segui, de 42 anos, e Yunia Rodrigues Diaz, de 34, tiveram dois meses de aula de português. As lições contemplavam aulas de geografia brasileira e simulação de consulta. Egly é de Santa Clara, no centro de Cuba. Yunia de Las Tunas, no leste do país. Ambas conheceram o local de destino apenas com três dias de antecedência: Xique-Xique, no sertão baiano, cidade de 48 000 habitantes, a 600 quilômetros de Salvador, uma das localidades cujo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) está entre os mais baixos do Brasil. No segundo dia em Xique-Xique, em um jantar protocolar na casa de um médico da cidade, as duas contam que foram hostilizadas. Alguns viravam o rosto quando elas se aproximavam. O tempo e a atividade cotidiana trataram de desanuviar o clima. Hoje, elas são respeitadas e trabalham em paz. A sala e os dois quartos do apartamento que dividem em Xique-Xique estão lotados de eletrodomésticos embalados para a viagem de volta a Cuba. Egly presenteará seus pais com os produtos comprados no Brasil. Yunia montará a própria casa. Elas dividirão o pagamento do contêiner que levará o material todo até seu país de origem.

https://www.youtube.com/watch?v=OSamWVHR744

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Os protestos contra os médicos cubanos deram-se mais por ideologia do que por questões técnicas. Médicos são, até hoje, um dos principais produtos de exportação da ilha comunista. Atualmente, 15 000 estão distribuídos por países africanos, asiáticos e latino-americanos, trabalhando em programas semelhantes ao Mais Médicos. Não é caridade. A parte do Leão do salário que os médicos recebem no estrangeiro fica para o governo de Havana. Com isso, a remuneração mensal de um cubano é cerca de um quarto do que recebem os colegas do programa de outras nacionalidades. São 2 976 reais ante 11 500 reais. Os cubanos conhecem a diferença salarial antes mesmo de sair de seu país. Por necessidade, aceitam-na. Diz Egly: “Assinamos o contrato sabendo exatamente quanto vamos ganhar”. Se exercessem a mesma profissão em Cuba, Egly e os colegas de profissão ganhariam míseros 200 reais, uma fração em relação ao salário que recebem no Mais Médicos.

Entre os médicos cubanos que estão no Brasil, todos passaram por um programa semelhante no exterior antes de vir para o país. Além disso, têm ao menos seis anos de experiência profissional em Cuba. Egly e Yunia participaram, durante quatro anos, do Programa Missão Bairro Adentro, na Venezuela. Em Cuba, existem 75 000 médicos em atuação – o equivalente a um para cada 160 habitantes. No Brasil, há um médico para cada 500 pessoas, com evidente desequilíbrio na distribuição dos profissionais pelo país. Nas regiões Sudeste e Sul, a proporção de médicos por habitantes é o dobro em relação ao Norte e ao Nordeste. As capitais, que concentram 25% da população, têm 55% dos médicos. Para o interior, onde fica o restante dos brasileiros, vão apenas 45% dos médicos. Uma das justificativas oficiais para essa má distribuição está na falta de infraestrutura de trabalho nas cidades menores. Os cubanos ocuparam esse vácuo – em condições que podem ser razoáveis, mas muitas vezes são insatisfatórias. Diz o presidente da Associação Paulista de Medicina, Florisval Meinão, outro crítico do Mais Médicos: “Um projeto de política de saúde de excelência precisa criar condições para um bom atendimento, e o Mais Médicos mascara essa necessidade ao contratar profissionais que aceitem situações precárias de trabalho”.

Os cubanos são obrigados a aceitar a indicação do local em que trabalharão – não lhes são dadas alternativas, e para onde vão precisam aprender a se virar. Na secura de Xique-Xique, Egly e Yunia são paradas na rua por pacientes que pedem sua atenção. É uma receita vencida, uma dúvida sobre uma medicação, um sintoma inusitado. Casos que não possam ser resolvidos imediatamente são encaminhados para o posto. Os instrumentos de trabalho se resumem a um estetoscópio e um aparelho de pressão. Os doentes de Egly e Yunia já estão acostumados a receber dois tipos de orientação no consultório – as medicações convencionais e as caseiras. Uma paciente de Yunia que sofria de colesterol alto recebeu como prescrição o uso de estatinas e também a ingestão de uma infusão de berinjela para aplacar o problema. Egly recomendou a uma criança que sofria de dermatite uma pomada e compressas feitas com água de folha de goiabeira. Os cuidados parecem comezinhos, mas a diferença entre o nada e um singelo apoio médico é oceânica, como indicam as expressões de alívio e esperança nos corredores. Os pacientes, sem exceção, sentam ao lado das médicas nos consultórios – não do outro lado da mesa. O hábito é ensinado nas faculdades em Cuba para que o profissional possa observar as reações do corpo do paciente por completo desde o início da consulta, numa postura mais fraterna, menos distante.

O calor do primeiro contato é crucial. A atenção primária em saúde praticada pelos profissionais do Mais Médicos é a porta de entrada da população aos serviços do SUS. Eles têm a função de orientar sobre a prevenção de doenças, solucionar problemas menos complexos e triar casos graves. São os “médicos da família” que invariavelmente têm como principal recurso a conversa com o paciente – a anamnese, no jargão da medicina. Ações como essa têm resultados extraordinários no controle de afecções, em especial as crônicas. Recentemente, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) mediu os efeitos desse tipo de atuação médica. Concluiu que o atendimento básico reduz em 56,5% a incidência de infartos e em 40% a de derrames. O estudo foi conduzido em 645 municípios ao longo de quinze anos. A lógica é simples. Os cuidados elementares previnem os fatores de risco, como diabetes, hipertensão e colesterol alto.

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https://www.youtube.com/watch?v=pEA8A2agyi0

Aos 55 anos, Ernesto Tironi entrou no Mais Médicos em 2014. Ele atende uma comunidade na Ilha da Maré, a quarenta minutos de barco pela Baía de Todos os Santos. Mal desce na Maré, os pacientes já o cercam para falar de problemas de saúde – a maioria com hipertensão e diabetes. No dia em que a reportagem de VEJA acompanhou sua jornada, o atendimento era dedicado a grávidas. Tironi, natural do Rio de Janeiro, usou recursos nas consultas que impressionariam muitos teóricos e pregadores da chamada medicina humanizada, adaptando-se à realidade cultural da região. Uma das pacientes, aos oito meses de gestação, afirmou que teria o filho em Salvador, mas que só faria a viagem perto da data prevista do parto. Ao perceber que a decisão da paciente era irrevogável, apesar dos riscos da travessia da baía, o médico disse então que autorizaria a viagem se ela usasse um barco de fibra de vidro, mais resistente e seguro do que as canoas de madeira. “Se você não gosta de gente, essa é a pior atividade que pode seguir”, diz ele.

Estima-se que 63 milhões de brasileiros tenham sido atendidos nas 4 088 cidades onde o Mais Médicos já foi implantado. O governo sabe que o programa funciona, conhece seus defeitos, mas não existe ainda um levantamento minucioso sobre os resultados. Também conhece descompassos que precisam ser corrigidos. Um relatório feito em 2015 pelo Ministério da Transparência, publicado em janeiro deste ano, mostrou que a chegada dos profissionais do Mais Médicos fez com que algumas prefeituras reduzissem o número de funcionários nos ambulatórios. A lógica é simples. Os médicos do programa são pagos pelo dinheiro federal, e, ao recebê-los, as prefeituras se livram das despesas pagas pelos cofres do município. Antes do Mais Médicos, a atenção básica no país tinha cerca de 47 000 médicos. Com os 18 000 médicos do programa federal, o pelotão deveria subir para 65 000, mas não foi o que aconteceu. O número parou em 55 000 profissionais. Houve, portanto, a demissão de pelo menos 10 000 médicos que custavam caro aos municípios – e que, naturalmente, acham que o Mais Médicos é o pior programa do mundo. Nesse caso, o mais correto seria chamar de “menos médicos”.

Outra fragilidade do Mais Médicos apontada no relatório é financeira. Cerca de cinquenta profissionais desligados do projeto receberam, em conjunto, mais de 770 000 reais de ajuda de custo para se instalar nas cidades de trabalho. No entanto, não permaneceram nos locais pelo período mínimo de 180 dias. Receberam e foram embora. Diz uma das regras do programa: “Na hipótese de desligamento voluntário do projeto no prazo inferior a 180 dias será exigida do médico participante a restituição dos valores referentes à ajuda de custo e passagens aéreas”. Até agora, nada foi devolvido.

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Como os salários não são altos, pelo menos em comparação com o que se paga aos médicos em início de carreira nos bons hospitais das metrópoles brasileiras, e como as condições de trabalho são precárias, a regra geral do Mais Médicos é abnegação. Há três anos no programa, o baiano Felipe Pedral Sampaio, de 30 anos, trabalha em um posto de saúde no bairro de Alto do Peru, em Salvador. O lugar é até bem equipado. Há três médicos além dele – um da prefeitura e dois cubanos do Mais Médicos. Sampaio entrou no projeto federal por um motivo prático, sem nenhum idealismo, que foi se desenvolvendo aos poucos. Recém-formado, não havia passado na prova de residência para radiologia. Ele acaba de renovar seu contrato por mais três anos. Conclui Sampaio: “Lidar com a dura realidade brasileira e poder, de alguma forma, melhorá-la me tornou um médico e uma pessoa melhor”. Os 63 milhões de brasileiros, muitos dos quais viram um médico pela primeira vez, agradecem.

Os vídeos que acompanham a reportagem mostram a rotina dos médicos:

https://www.youtube.com/watch?v=jgRLWdFjmSw

 

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