Medicina do espetáculo: quando a busca por likes compromete a ética profissional
Casos recentes de médicos que expuseram pacientes nas redes sociais demandam reflexão sobre o que pode realmente ser compartilhado

Vivemos um tempo em que a visibilidade digital se tornou um ativo que colabora para um quadro preocupante: transformar histórias de pacientes e casos clínicos em conteúdo para redes sociais.
Recentemente, alguns episódios lamentáveis se tornaram públicos, como os de estudantes de medicina que zombaram em vídeo do caso de uma paciente submetida a três transplantes cardíacos; ou o de outra aluna que fez um filme registrando um exame ginecológico realizado sem consentimento. Mas esses episódios não são causas isoladas; são sintomas de um fenômeno denominado “medicina do espetáculo”.
Nunca a linha entre o compartilhar conhecimento e o transformar o sofrimento do outro em posts e likes esteve tão difusa. Os médicos-influencers, acumulando milhares de seguidores, fazem exatamente isso, exibindo procedimentos, mostrando “antes e depois” e, muitas vezes, expondo pacientes de um jeito sensacionalista. E essa prática, ao mesmo tempo que é eticamente discutível, se torna um sério risco jurídico para os profissionais envolvidos.
Observando a preocupação dos médicos, noto, como advogado que atua na área, ainda o desconhecimento da grande maioria deles sobre as consequências jurídicas desse tipo de conduta. O Código de Ética Médica e a Resolução CFM nº 2.336/2023 é bastante claro ao proibir a exposição de pacientes em meios de comunicação sem o seu consentimento expresso. E, mesmo com plena autorização, a utilização sensacionalista de um caso clínico é infração ética grave.
Do ponto de vista jurídico, essas ações podem corresponder a diversos ilícitos: violação de privacidade, quebra de sigilo profissional, dano moral e até crime, conforme a gravidade. As consequências podem ir de processo no Conselho Regional de Medicina com penalizações até ações indenizatórias de elevado valor e, em situações extremas, responsabilização criminosa.
Chamam a atenção, também, os casos de alguns profissionais da área que transformaram, por exemplo, os procedimentos estéticos em espetáculo para consumo digital. Esses profissionais geralmente extrapolam os limites da ética em nome da viralização, esquecendo de que o paciente não é material de marketing, mas uma pessoa vulnerável que depositou sua saúde, confiança e intimidade nas mãos de alguém.
O embate entre educar o público e mercantilizar a medicina deve ser visto não apenas em função da intenção, mas da forma como o conteúdo é produzido e distribuído. Os médicos podem e devem utilizar as plataformas digitais para oferecer informações de saúde, desde que o façam com responsabilidade e sem sensacionalismo, respeitando a dignidade dos pacientes.
Para manejar tal complexo cenário digital, é recomendável que os profissionais da saúde procurem assessoria jurídica específica antes de implementar qualquer estratégia de comunicação em redes sociais. Um aconselhamento preventivo pode evitar não apenas a propositura de ações administrativas e judiciais, mas também o prejuízo da reputação construída ao longo de anos de formação e exercício da atividade.
A medicina contemporânea tem a tarefa de unir comunicação digital e valores hipocráticos. Não é necessário espetáculo para ser grande; sua grandeza está no respeito, no cuidado, na discrição com que combate o sofrimento da humanidade. Esses são valores que nenhum número de likes ou compartilhamentos irá substituir.
* Sérgio Meredyk Filho é advogado especializado em direito na saúde, pós-graduado pela FGV e pelo Complexo Educacional Damásio de Jesus e sócio do escritório Vilhena Silva, em São Paulo