Quando se fala em medicina baseada em evidência (MBE), é comum que o comentário mais instintivo seja “ué, mas não é assim desde sempre?”. O método sempre existiu e, por séculos, a prática médica salvou vidas, mas foi só há pouco mais de três décadas que o rigor científico deixou de ser exclusivo dos laboratórios e ganhou espaço, também, na prática clinica.
A primeira pessoa que cunhou esse conceito de MBE foi o médico canadense Gordon Guyatt, o que, no futuro, se transformou em um método que, até hoje, orienta médicos a encontrar boas evidências de como conduzir suas práticas clínicas.
Por ocasião de sua passagem pelo Brasil para participar do ciclo de palestras do The Future of Medicine, o médico concedeu entrevista a VEJA para falar sobre como evoluiu a incorporação da ciência na prática clínica, o que ainda pode ser melhorado e para discutir temas atuais e polêmicos, como inteligência artificial e autonomia médica.
Como as decisões clínicas eram tomadas antes da medicina baseada em evidências? Antes da MBE os médicos não eram treinados para analisar pesquisas. Isso era um grande problema, porque eles não tinham ideia de onde procurar as melhores informações. Havia muito mais ênfase na fundamentação fisiológica. Se você pudesse criar uma explicação biológica [para uma terapia], isso seria considerado evidência muito mais do que é hoje. Também havia muito mais base em experiências empíricas.
Três décadas após o primeiro artigo sobre o tema, como você avalia a incorporação dessa prática? Hoje, os médicos geralmente têm noção de que há evidências de alta e de baixa qualidade. Sabem que novos tratamentos precisam ser avaliados por ensaios clínicos randomizados e que é preciso procurar revisões sistemáticas. Há 15 anos, estava diante do público médico, eu mostrava um determinado gráfico comum na pesquisa e eu tinha que explicar o que era. Hoje, todo mundo sabe o que esses gráficos significam. Para mim, esse é o melhor exemplo de como as coisas mudaram. Conseguir interpretar esses dados é um grande avanço. Além disso, os recursos que os clínicos têm para realizar uma prática baseada em evidências explodiram.
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O que ainda precisa melhorar? Os clínicos, em grande parte, ainda operam por heurística. Suponhamos que eles usem cinco medicamentos para uma determinada condição. Se você pergunta por que eles usam esses medicamentos, eles respondem que é porque são bons. Seria um avanço se eles compreendessem quais são as evidências que baseiam o uso desses medicamentos, isso ajudaria muito a diminuir o número de erros. Também é preciso entender que a evidencia nunca te diz o que fazer, são apenas valores e referências que precisam ser interpretados. Saber quais são as evidências é importante para envolver o paciente na tomada de decisão e passar as informações de maneira eficiente quando isso for necessário.
Dada a rotina exaustiva da maioria dos médicos, qual a melhor forma de se manter atualizado das evidências? Não conheço estudos que tenham analisado o que é mais eficaz, então não confie muito em minha resposta. Minha impressão é que a melhor maneira é ter uma ou mais fontes confiáveis de diretrizes baseadas em evidências que possam ser consultadas sempre. Assim, você tem um ou mais recursos que poderão fornecer uma direção clínica que já foi previamente avaliada. É assim que eu faço e é assim que vejo pessoas ao meu redor fazendo.
A inteligência artificial pode ajudar? Bem, eu estou assumindo um papel de liderança em uma equipe que está desenvolvendo um protocolo para trabalhos que avaliam o desempenho da IA e fornece orientações para resumir as evidência. Então acho que nós ainda vamos descobrir. A evidência de como a IA se desempenha está sendo gerada agora.
No Brasil, há algumas queixas em relação ao comprometimento do Conselho Federal de Medicina com a medicina baseada em evidências, e isso ficou bastante evidente durante a pandemia. Ah aqui os médicos podiam prescrever cloroquina, né? Meu Deus, isso foi um desastre.
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Exatamente. O conselho defende que os médicos tenham essa autonomia, independentemente das decisões serem ou não baseadas em evidências. Como o senhor vê isso? Bem, esse é um problema e pode ter consequências negativas. Nos Estados Unidos, por exemplo, esse tipo de política se mostrou destrutiva. É necessário encontrar algum tipo de equilíbrio, mas os médicos têm que ser responsáveis e devem ser responsabilizados. O princípio é que a decisão deve ser tomada de maneira consistente com as evidências e de acordo com a preferência dos pacientes.
O conselho, então, deveria ter uma posição mais forte para evitar posturas contrárias? Me parece que não só eles deveriam ter um papel mais forte nisso, mas também deveriam mudar suas regras para que [os médicos] fossem obrigados [a agir de maneira responsável].
Apesar da popularidade do conceito de medicina baseada em evidências, temos muitos procedimentos não científicos sendo amplamente utilizados, alguns deles em sistemas de saúde pública, como homeopatia e ozonoterapia. Quão perigoso isso é e como evitar? Eu não sei o quão perigoso é. Meu entendimento sobre a homeopatia, por exemplo, é que você dilui as substâncias até concentrações muito pequenas, onde provavelmente não vão fazer nenhum bem, mas também não podem fazer nenhum mal. E sabemos que os efeitos placebo são muito poderosos, então talvez isso não seja tão ruim, desde que não estejam causando dano e não estejam desestimulando os pacientes de obter tratamento eficaz quando disponível. Por outro lado, aqui no Canadá, você tem uma comunidade de quiropraxia que afasta as pessoas de obter as intervenções médicas que elas deveriam receber. Se isso estiver acontecendo, é muito problemático.
Eles deveriam ser responsabilizados por usar esses métodos? Ah, claro. Por aqui [Canadá], o colégio de quiropraxia não quer tomar uma atitude severa, mas deveria ser considerado erro profissional de quiropraxia dizer às pessoas que vacinas são algo ruim. Quero dizer, profissionais de saúde não deveriam ser autorizados a fazer isso.
Como evitar isso? Você quer saber o que é realmente ruim? É quando as pessoas são reembolsadas por fazer coisas inúteis. Os sistemas de saúde não deveriam reembolsar os clínicos por realizarem procedimentos inúteis. Esse é um problema real. Às vezes, eles estão sendo pagos muito bem por fazer coisas que não funcionam. Isso é um problema.