Menos que 12 por 8: o que diz a nova diretriz nacional de controle da pressão alta
A nova bússola endurece limites para o nível adequado de pressão arterial e combate a inércia no tratamento

“Assassina silenciosa.” Foi com essa alcunha que a hipertensão ganhou a merecida preocupação da classe médica e da sociedade no desenrolar do século XX. Um episódio emblemático, envolvendo uma vítima ilustre, ajudou a mobilizar estudos e esforços diante de uma condição até então pouco divulgada: o presidente americano Franklin D. Roosevelt (1882-1945), figura seminal na Segunda Guerra Mundial, sucumbiu aos 63 anos depois de um derrame. A causa, como se descobriu em seu prontuário, era a hipertensão. Hoje, bilhões de pessoas pelo mundo, independentemente do lugar e da classe econômica, convivem com o problema marcado pelo “aperto” nos vasos sanguíneos que não costuma dar sinais até que os estragos aconteçam. E eles acontecem. A pressão alta é o principal fator de risco para o acidente vascular cerebral (AVC), a maior causa de morte entre os brasileiros, além de patrocinar infartos e outras complicações. Diante de um desafio de saúde pública que atinge cerca de 30% da população, a medicina revisa, de tempos em tempos, as melhores medidas de controle e prevenção. E, agora, em documento obtido antecipadamente por VEJA, a Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) acaba de atualizar sua diretriz de manejo da hipertensão.
A nova bússola, apresentada no Congresso Brasileiro de Cardiologia, em São Paulo, endurece limites para o nível adequado de pressão arterial e combate a inércia no tratamento. Os autores da diretiva propõem mudanças tendo em vista os impactos devastadores da doença no país: sem contar infartos e derrames, com suas respectivas sequelas, a hipertensão compromete a visão, os rins, a circulação das pernas e já foi associada inclusive à demência. Diante de um cenário adverso, que aponta para o aumento dos casos desde a pandemia de covid, um grupo da SBC se debruçou sobre as pesquisas e os consensos internacionais a fim de remodelar a última diretriz brasileira, publicada em 2020. A leitura do extenso trabalho deixa clara a busca por medidas de pressão mais baixas e por intervenções precoces caso elas disparem.
Assim, decreta o fim da classificação de “pressão ótima” para o conhecido valor de 12 por 8 — número que se refere a 120 por 80 mmHg. Agora, a meta de “pressão normal” é ficar abaixo desse índice. “Defendemos uma abordagem mais preventiva da doença. Quanto mais baixa a pressão, melhor”, diz a cardiologista Andréa Brandão, coordenadora da diretriz da SBC. Sob essa óptica, pessoas cujas medidas — com aferição preconizada ao menos uma vez ao ano, na ausência de suspeitas — superem os 12 por 8 devem ser avaliadas por um médico, pois configurariam o que se chama de “pré-hipertensão”. “Se não houver correção nessa fase, a pessoa vai se tornar hipertensa à medida que envelhece”, diz Brandão. As estatísticas reforçam essa posição: a prevalência de pressão alta chega a 65% em pessoas com mais de 65 anos. E a combinação da doença com o avançar da idade conspira a favor do AVC — só em 2024, foram mais de 85 000 casos no país, a maior causa de óbitos.

A SBC mantém o diagnóstico de hipertensão propriamente dita em níveis de pressão a partir de 14 por 9 — na realidade, valores iguais ou maiores que 140 mmHg para o primeiro número e iguais a 90 mmHg para o segundo número da medida. Nessas situações, a diretriz prega acompanhamento intensivo, na maioria das vezes com o uso de remédios, para chegar ao menos a 13 por 8. “Mas a ideia é também individualizar mais o tratamento, traçando as estratégias caso a caso”, afirma Brandão. O rigor do novo guia se impõe em face de uma tarefa hercúlea: estima-se que apenas 30% dos hipertensos hoje consigam se manter abaixo dos 14 por 9. Mas não seria uma missão irrealista diminuir ainda mais a linha de corte ideal? “O que os estudos mostram é que essas novas metas oferecem maior proteção cardiovascular e reduzem desfechos negativos, como o AVC”, responde a coordenadora da diretriz.

Para tornar mais viável a prevenção dos problemas, o novo guia se baliza pela noção de recrutamento antecipado, isto é, o conceito de partir para os cuidados, como mudanças no estilo de vida, logo entre aqueles enquadrados na faixa que vai de 12 por 8 a 14 por 9. Tudo para não deixar a doença evoluir. Para cravar em que estado se encontra o indivíduo, é necessário realizar a medição da pressão em duas ou mais consultas médicas, com intervalos de dias ou semanas, e em alguns casos fazer uma avaliação mais aprofundada com exames como a monitorização ambulatorial de pressão arterial (Mapa), em que o paciente passa 24 horas acompanhado por um aparelho.
O esforço compensa. Trata-se de tolher as duas maiores causas de morte no planeta, o infarto e o derrame. “A hipertensão responde por metade dos casos de AVC”, afirma a neurologista Sheila Martins, presidente da Rede Brasil AVC. “Se fosse para escolher um único fator para modificar junto à população, eu diria que deveria ser esse.” A médica, que coordena o serviço de neurologia do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre, ressalta que medidas de contenção são urgentes, sobretudo porque ainda paira nos consultórios uma “inércia terapêutica”. “Se o tratamento atrasar, perderemos o tempo de salvar os vasos, o cérebro e o coração.”

A diretriz traz ainda a mensagem de que homens e mulheres devem ser tratados com equidade nos atendimentos relacionados à pressão. No entanto, estabelece um capítulo dedicado à saúde feminina e suas peculiaridades, uma vez que as flutuações hormonais e marcos como a gravidez e a menopausa podem repercutir nas artérias. “Hoje sabemos que 35% das mortes entre mulheres se devem por questões cardiovasculares”, afirma Brandão. Outra novidade que torna o documento uma referência para médicos de todo o país — não só da cardiologia — é o espaço dado a recomendações destinadas ao SUS, sistema que atende 75% dos brasileiros. Há um capítulo com as drogas e dosagens disponíveis em programas como o Farmácia Popular.
Por falar em remédios, a diretriz bate na tecla de que o tratamento medicamentoso é um dos pilares do combate ao mal — ao lado de medidas comportamentais que vão da redução do sal de cozinha à prática de exercícios. E esse é um ponto desafiador, seja porque o paciente resiste a tomar um comprimido, seja porque o esquece ou o abandona por não se sentir mal. Para driblar a falta de adesão, experimentos mundo afora testam drogas que combinam até três princípios ativos na mesma cápsula — numa iniciativa nacional, a polipílula desenvolvida pelo Einstein Hospital Israelita conseguiu baixar a pressão para níveis adequados em doze semanas. As regras para domar a hipertensão apertaram, de fato. Mas é melhor agir assim, com o respaldo da ciência, do que deixar as artérias sufocadas pela não tão silenciosa assassina.
Publicado em VEJA de 19 de setembro de 2025, edição nº 2962