Mesmo com evidências científicas frágeis, ozonioterapia recebe aval do Conselho Federal de Medicina
Decisão se baseia em pesquisas pequenas e chega em um contexto de disputa entre médicos sobre quem pode lucrar com a prática

O Conselho Federal de Medicina (CFM) decidiu autorizar o uso de terapias baseadas em ozônio – um gás tóxico e corrosivo, com forte efeito desinfetante – para um número limitado de condições de saúde, incluindo úlceras de pé diabético e dor lombar por hérnia de disco. A resolução completa do Conselho pode ser lida aqui.
Crucialmente, a liberação não inclui a ozonioterapia por insuflação retal, prática pseudocientífica e muitas vezes vendida como panaceia por profissionais de saúde “alternativos”. Essa modalidade chegou a ser promovida durante a pandemia de COVID-19 como forma de combater a doença.
Vendedores de ozonioterapia retal rotineiramente prometem a cura de “mais de 200 doenças”, numa lista que vai de azia a COVID longa, e inclui até câncer. Em contraste, a resolução recente do CFM proíbe expressamente o uso de ozonioterapia em feridas oncológicas.
Até a nova decisão do CFM, médicos só estavam autorizados a oferecer tratamentos com ozônio em condições experimentais – isto é, como parte de estudos científicos, e não comercialmente, em consultórios e clínicas. Nesse aspecto, o CFM vinha se mostrando mais conservador do que diversos outros conselhos profissionais, que já haviam autorizado seus filiados a oferecer ozonioterapias, incluindo os de Biologia, Veterinária, Enfermagem, Biomedicina e Odontologia. É possível que o Conselho tenha sido pressionado a rever sua posição por médicos inconformados com o fato de outros profissionais estarem faturando com algo que eles próprios gostariam de vender.
Especulações pecuniárias à parte, o CFM apresenta a decisão como uma resposta ao avanço das evidências científicas: agora, já haveria conhecimento científico suficiente para validar a aplicação do ozônio para as condições mencionadas na resolução.
O argumento, no entanto, não parece corresponder aos fatos. A evidência positiva de eficácia e segurança das diversas formas de ozonioterapia, incluindo as agora autorizadas pelo Conselho, segue baseada em estudos inconclusivos, com número pequeno de participantes, in vitro, ou de baixa qualidade.
Por exemplo, um dos artigos de revisão mais recentes sobre ozonioterapia para úlceras de pé diabético a constar da lista de referências da resolução (artigo que apresenta conclusões maravilhosamente positivas para a prática) foi recebido, aceito e publicado num intervalo de pouco mais de três semanas, e num periódico desclassificado da base de dados Web of Science. O tempo curto entre submissão e aceite põe em dúvida a qualidade da revisão pelos pares.
Aliás, a resolução do CFM diz que o artigo, Use of Ozone Therapy in Diabetic Foot Ulcers (Astasio-Picado et. al., 2023) saiu no Journal of Clinical Medicine (JCM). Trata-se de um equívoco. O trabalho, na verdade, pode ser encontrado no Journal of Personalized Medicine (JPM). Ambos pertencem à editora MPDI, de reputação periclitante, mas o JCM tem um nome muito melhor do que o JPM. O JCM ainda é indexado pela Web of Science.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de “O Livro dos Milagres” (Editora da Unesp), “O Livro da Astrologia” (KDP), “Negacionismo” (Editora de Cultura) e coautor de “Pura Picaretagem” (Leya), “Ciência no Cotidiano” (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, “Contra a Realidade” (Papirus 7 Mares) e “Que Bobagem!” (Editora Contexto).