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MicroRNA: entenda de vez o assunto que rendeu o Nobel de Medicina

Já foram identificados mais de mil microRNAs que participam da ativação e silenciamento de genes; quando esta regulação falha, podem surgir doenças, como câncer

Por Natalia Pasternak / Revista Questão de Ciência*
Atualizado em 8 out 2024, 18h39 - Publicado em 8 out 2024, 18h38
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  • Todas as células do corpo humano contêm o mesmo genoma, a informação genética na forma de moléculas de DNA. Ou seja, em essência, todas as células vêm com o mesmo manual de instruções. Como, portanto, a célula do pâncreas sabe que tem que produzir insulina, e a do cérebro, não? Como as células dos músculos são tão diferentes dos neurônios, que por sua vez são tão diferentes de células do coração ou da pele? Como, a partir de um mesmo livro de receitas, as células se diferenciam em tecidos e órgãos com funções tão especificas, sabendo exatamente quais proteínas produzir e quais não? A resposta disso é regulação gênica, e rendeu o Nobel de Medicina e Fisiologia deste ano para os pesquisadores Victor Ambros e Gary Ruvkun.

    Na escola, aprendemos que os genes, na molécula de DNA, são transcritos em uma molécula de RNA mensageiro que, por sua vez, é traduzido em uma proteína. Ou seja, DNA gera RNA que gera proteína. Assim é que os genes são transformados em algo com estrutura e função. É o chamado dogma central da biologia molecular. Veremos mais adiante por que é uma péssima ideia chamar algo de dogma em ciência, aliás.

    Como evitar então que todas as células do corpo que não são do pâncreas saiam por aí produzindo insulina? É preciso regular como os genes são ativados e desativados. Precisa ter um botão de “liga e desliga”. Intervir no processo em que DNA gera RNA que gera proteína pode ser um bom mecanismo. Podemos ativar ou desativar genes se conseguirmos pôr obstáculos em etapas do processo.

    Desde a década de 1960 que se conhecem vários tipos de regulação gênica que interferem no início do processo, impedindo que o DNA produza RNA. São os chamados “fatores de transcrição”, proteínas que se ligam a regiões específicas do DNA, determinando quais delas serão transcritas em mRNA e quais não. Eu mesma trabalhei com fatores de transcrição em bactérias durante o meu doutorado e pós-doutorado, estudando como os genes da bactéria se regulavam em situações de estresse.

    No caso das bactérias, elas usavam isso para responder a estímulos do ambiente, garantindo um melhor uso da energia. Afinal, imagina a bagunça se mesmo numa bactéria, um organismo unicelular, todos os genes estivessem ativos ao mesmo tempo?

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    Os pesquisadores premiados com o Nobel não trabalhavam com bactérias. Eles estudaram um verme chamado Caenorhabditis elegans, de 1 mm de comprimento, e que todo mundo chama de C. elegans. É um dos melhores modelos para estudo de células eucarióticas, as células que a gente encontra em organismos multicelulares, como plantas e animais.

    Esses pesquisadores estavam muito curiosos com duas mutações neste vermezinho: uma mutação num gene chamado lin4 e, outra, no lin14. Estudando estes mutantes, perceberam que, de alguma forma, o lin4 regulava a atividade do lin14. Descobriram que o RNA formado pelo lin4 era muito pequeno, em torno de uns 20 pares de bases – as bases nitrogenadas são as letrinhas do DNA (A,T, C e G), e do RNA (A, U, C e G) -, e parecia não codificar para proteína nenhuma: não tinha as sequências necessárias para ser traduzido em proteína.

    Este RNA pequeno parecia servir apenas para atrapalhar a expressão do gene lin14! Trabalhando em conjunto, os pesquisadores perceberam que o lin4, de alguma forma, inibia o lin14, mas não impedia a formação de um mRNA do lin14. O que quer que estivesse acontecendo, estava acontecendo depois desta etapa.

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    Ou seja, este RNA pequeno, que parecia não servir para nada, estava “empatando” a tradução de outro RNA, não deixava o outro RNA gerar uma proteína. O mecanismo também era extremamente simples. Comparando as sequências dos lin4 às do lin14, os cientistas perceberam que elas “encaixavam”. Lembra como as fitas da hélice dupla do DNA pareiam uma com a outra de um modo específico? A com T, C com G? O microRNA lin4 tinha esse tipo de encaixe, só que com uma região do mRNA do lin14. Quando se ligava ali, “empatava” a produção da proteína. Aqui vemos por que nunca se deve chamar algo de “dogma” na biologia. Já deu para perceber que nem todo RNA gera proteína, certo?

    Descobriu-se ali um jeito novo de regular a expressão de genes. Este modelo foi batizado de regulação pós-transcricional, pois acontece depois da transcrição do mRNA, e não antes, como acontece com os fatores de transcrição. A molécula pequena de RNA foi batizada de microRNA. Isso foi uma tremenda novidade na época, e rendeu aos cientistas duas publicações na revista cientifica Cell, em 1993.

    Na época, a comunidade cientifica encarou a descoberta como algo interessante, mas achou que devia ser um mecanismo exclusivo do verme, do C. elegans. Só depois de mais alguns anos de pesquisa é que o grupo de Ruvkun mostrou que estes microRNAs são universais em todos os organismos multicelulares.

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    Só em humanos, já foram identificados mais de mil microRNAs, que participam da ativação e silenciamento de um monte de genes. Quando esta regulação falha, podem surgir doenças, como câncer, doenças autoimunes e falhas no desenvolvimento embrionário. Um belíssimo trabalho de ciência básica, aquela movida apenas pelo desejo do conhecimento. A pesquisa pode até ter aplicações importantes na medicina e na agricultura. Afinal, saber ligar e desligar genes pode ser muito útil para terapia gênica e criação de plantas resistentes a vírus, por exemplo. Mas o fato é que os cientistas não estavam pensando nisso, queriam apenas entender como genes são regulados.

    Curiosidade e busca por conhecimento movem a ciência. E, por isso, precisam ser estimulados e financiados. Neste quesito, o Brasil ainda tem muito o que aprender. Se quisermos ter um Prêmio Nobel para chamar de nosso, melhor começar a levar a ciência a sério, com investimento, incentivos e valorização de carreira para nossos jovens pesquisadores.

    * Natalia Pasternak é professora de ciência e políticas públicas na Universidade de Columbia (EUA) e Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC). O artigo foi publicado originalmente na Revista Questão de Ciência, do Instituto Questão de Ciência

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