Circula, há algum tempo, a notícia de que a dupla de divulgadoras científicas do Nunca Vi 1 Cientista, as pesquisadoras Laura Marise e Ana Bonassa, foram condenadas a pagar uma indenização de R$ 1 mil pela forma – que o Judiciário considerou ofensiva – com que desmentiram a alegação, feita por um profissional de saúde em rede social, de que o diabetes seria uma verminose.
Questões de forma (e de gosto, e de liberdade de expressão, e de etiqueta online, etc.) à parte, no que diz respeito ao conteúdo, Marise e Bonassa estão absolutamente corretas: diabetes não é uma doença causada por vermes, e afirmar publicamente que seja pode levar pessoas a se exporem a riscos graves de saúde.
Mas de onde veio essa ideia de conectar o diabetes a vermes? Durante minha busca, deparei-me com alguns vídeos que apresentavam essa conexão estapafúrdia. Um deles, de 2023, publicado no Instagram por um nutricionista que afirma que vermes podem causar diabetes, mais especificamente o parasita Eurytrema pancreaticum. Outros vídeos, em diversas redes, seguem na mesma linha, às vezes acrescentando que o parasita supostamente vem no leite de vaca.
O diabetes é uma doença metabólica caracterizada pela hiperglicemia – níveis elevados de açúcar no sangue – que pode ser causada por problemas com a insulina, um hormônio secretado pelo pâncreas. O diabetes ocorre em dois tipos principais, chamados, de forma pouco criativa, de “tipo 1” e “tipo 2”.
Segundo a Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD), o diabetes tipo 1 é uma doença autoimune que geralmente aparece na infância ou adolescência, acometendo pessoas com predisposição genética. Basicamente, o sistema imune dessas pessoas ataca as células beta pancreáticas (onde é produzida a insulina), destruindo-as. Quem sofre de diabetes tipo 1 precisa receber a insulina que falta no organismo de alguma fonte externa.
O diabetes tipo 2, também conhecido como diabetes mellitus não dependente de insulina, representa mais de 90% de todos os casos. Esse tipo de diabetes está associado a fatores genéticos e ambientais. Mas vale destacar que a presença de fatores genéticos, por si só, não se traduz diretamente no desenvolvimento do diabetes tipo 2. A adoção de hábitos de vida saudável (dieta equilibrada, exercícios físicos, controle da obesidade e não ser sedentário) pode prevenir a doença.
Diferentemente do tipo 1, o diabetes tipo 2 é caracterizado por duas anomalias relacionadas à insulina: a resistência à insulina e a disfunção das células beta pancreáticas. A resistência à insulina refere-se a uma redução na sensibilidade ao hormônio. Já a disfunção das células beta pancreáticas ocorre porque, devido à redução da sensibilidade, essas células precisam trabalhar mais. Com o tempo, essa sobrecarga pode levar ao declínio da funcionalidade das células beta, resultando em deficiência de insulina.
Por isso, é comum que o tratamento farmacológico inclua medicamentos que auxiliem na inibição da absorção de glicose, no aumento da sensibilidade à insulina, na promoção da saciedade e na secreção de insulina dependente de glicose, entre outros efeitos.
Percebem que em nenhum momento foi mencionado que leite contaminado ou parasitas causam diabetes? Garanto que o motivo não é porque pesquisadores, associações médicas ou órgãos de saúde estão tentando esconder essa informação da população, mas sim porque as alegações sobre diabetes parasitário não passam de uma mistura de fisiologia “free-style” baseada em casos clínicos ou hipóteses não testadas, apoiadas numa leitura muito seletiva e peculiar da evidência.
Aparentemente, um dos primeiros estudos que levantou a hipótese de que parasitas poderiam ser a causa de diabetes foi o artigo “Tape-worms as a Possible Cause of Diabetes”, publicado na Inglaterra em 1902. O autor, o médico Joseph E. Judson, descreve a condição de dois pacientes que apresentaram tênias associadas à glicosúria (eliminação de glicose pela urina).
Com base nesse par de ocorrências, o Dr. Judson teorizou que a tênia poderia entupir uma parte do pâncreas, levando à atrofia do órgão.
O autor reconhece que seria precipitado aceitar a teoria com tão poucas evidências, mas sugere que há a possibilidade de os sintomas de diabetes aparecerem em casos de infestação por tênia. Para aqueles que estão curiosos, a hipótese do cirurgião não se mostrou verdadeira.
Um parasita no pâncreas?
Tratando especificamente do parasita citado nas redes atuais, o Eurytrema pancreaticum, não há estudos em humanos que tenham observado uma relação entre esse parasita e o desenvolvimento do diabetes mellitus. Este é um parasita que realmente ataca o pâncreas – mas de animais ruminantes, com pouquíssimos casos registrados em humanos.
Um trabalho intitulado “Eurytrematose como modelo de desenvolvimento da patologia da Diabetes Mellitus tipo 1: parâmetros fisiopatológicos e estresse oxidativo” utilizou um parasita do mesmo gênero, mas de uma espécie diferente, e acredito que seja um bom ponto de partida para entendermos a “lógica” por trás de uma possível relação entre o parasita e a doença.
O experimento avaliou 15 pâncreas de boi. Após a inspeção para confirmação do parasitismo, os órgãos foram divididos em dois grupos: o grupo naturalmente infectado pelo Eurytrema coelomaticum (12) e o grupo não infectado, para fins de controle (3).
Os autores apontam que o pâncreas bovino infectado com E. coelomaticum apresenta alterações semelhantes às encontradas no pâncreas humano acometido por algumas doenças, incluindo o diabetes tipo 1. Mas são necessários mais estudos para avaliar a extensão dessas semelhanças.
Para não restar dúvidas: até o momento, não há comprovação de que parasitas do gênero Eurytrema sejam a causa, ou uma causa, do diabetes tipo 1. O que existe é apenas um modelo teórico — não confirmado — observado em um estudo realizado com pâncreas bovinos, que sugere essa possível relação. É isso: qualquer discurso que tente vender a ideia de que há comprovação de que parasitas causam diabetes tipo 1 não passa de uma mentira.
Relatos de caso
Pesquisadores japoneses publicaram um estudo intitulado “A Case of Human Pancreatic Eurytremiasis”, no qual apresentam um caso de infecção por euritrema em ser humano. De acordo com os autores, a euritrematose humana é uma infecção parasitária das mais raras. O Japão registrou nove casos de euritrematose humana, sendo que sete foram diagnosticados pela presença de ovos e dois pela presença de vermes adultos no paciente.
No Japão, em geral a euritrematose humana ocorre a partir da ingestão de gafanhotos (o segundo hospedeiro intermediário) infectados com o parasita. Os sintomas clínicos incluem desconforto abdominal, vômito, diarreia e, ocasionalmente, icterícia e hepatomegalia (aumento do tamanho do fígado).
Com relação ao relato de caso de 2019, trata-se de um homem de 43 anos que deu entrada em um hospital local devido a náuseas e coceira. Ele foi inicialmente diagnosticado com icterícia obstrutiva (uma condição clínica que ocorre quando há um obstáculo na passagem do fluxo da bile) e um tumor na cabeça do pâncreas.
Após a realização de diversos exames de imagem, o paciente recebeu o diagnóstico de câncer e foi submetido à duodenopancreatectomia (uma cirurgia que consiste na remoção da cabeça do pâncreas e do duodeno).
Contudo, durante um exame microscópico do tecido removido, foram observados numerosos ovos de parasita. Embora nenhum verme tenha sido detectado, o diagnóstico de euritrematose foi estabelecido.
Para compreender a raridade dessa infecção, é relevante observar que das quatro referências utilizadas no trabalho de Ogawa, três são relatos de casos dos anos de 1983 e 1986. Ou seja, antes da publicação do artigo, a última infecção registrada no país datava de 33 anos atrás.
Claro, alguém poderia apontar que a realidade japonesa é muito diferente da brasileira. Contudo, devo destacar que a literatura científica nacional sobre este tema é escassa. Um dos poucos artigos que aborda a questão é “Eurytrematosis: An Emerging Neglected Disease in South Brazil”.
Os autores apontam que não há relatos publicados de casos em humanos no Brasil, mas destacam a possibilidade de haver casos não identificados, já que o parasita não é considerado um patógeno humano, e por isso pode acabar não sendo detectado em exames. Os autores sugerem o consumo de agrião selvagem como fator de risco hipotético para a infecção.
Diante de tudo isso, posso afirmar com tranquilidade que qualquer pessoa que tente estabelecer uma ligação entre o diabetes e possíveis vermes está disseminando desinformação, seja por falta de entendimento sobre estudos científicos, por má-fé, ou ainda com o intuito de obter ganho financeiro ao vender protocolos de desparasitação.
O mercado de desparasitação
Parasitoses intestinais existem e, na maioria dos casos, acometem as pessoas por meio do consumo de alimentos — geralmente malcozidos ou crus — e água contaminados, falta de saneamento básico, contato com rios ou lagos poluídos, falta de higiene etc. Caso uma parasitose seja constatada, o médico prescreverá um medicamento específico para combatê-la e dará algumas dicas para preveni-la no futuro.
Infelizmente, há um mercado paralelo de desparasitação que se apoia em um marketing sensacionalista, baseado em afirmações que, em alguns momentos, são esdrúxulas, em outros, vagas, mas na maioria das vezes, falsas, como: “Hoje praticamente todos nós temos parasitas”; “Enquanto os fármacos só matam até 14 tipos de vermes, e temos mais de 100, o meu processo de desparasitação é natural”; “Se você sentir dor de cabeça constante, fadiga crônica, gases, diarreia, prisão de ventre, coceiras e problemas de pele, talvez seja sinal de que você está parasitado!”.
Perfis que propagam esse tipo de conteúdo geralmente incluem vídeos de cirurgias em que milhares de parasitas são retirados de algum indivíduo. A implicação que fica no ar é: “isso que acontece com quem não faz desparasitação”.
A estratégia é insuflar o medo no público e empurrar, como essenciais, produtos desnecessários e consultas com “especialistas”. É um próspero nicho de mercado.
Pode-se encontrar, online, um e-book assinado por um “nutricionista integrativo e naturalista”, que ressalta a importância da “desparasitação natural”. Citando ipsis litteris: “Muitas vezes, nosso intestino é invadido por parasitas que podem causar uma série de problemas de saúde, desde distúrbios digestivos até doenças crônicas. A desparasitação natural, utilizando alimentos específicos, é uma maneira eficaz de manter o intestino limpo e saudável.” Segue-se a apresentação para venda de kits para realizar o tal processo “natural”.
Há também uma seção de depoimentos de pacientes. Ciente de que não pode afirmar que sua dieta ou qualquer outra ação curou doenças específicas, o autor se apoia nesses relatos pessoais, que mencionam a remissão de esclerose múltipla, diabetes e até mesmo uma melhora significativa no autismo.
Há ainda inúmeras páginas no Instagram que fazem o mesmo tipo de apelo, e associam, de modo espúrio (mas provavelmente lucrativo) todo tipo de sintoma e incômodo à presença de “vermes” – incluindo compulsão por doces, roer unhas, queda de cabelo e coceira no ouvido.
Não sei se meu posicionamento é derrotista, mas acredito que, se não houver mudanças nas redes sociais para facilitar a denúncia de informações falsas e, principalmente, uma iniciativa do Poder Legislativo para atualizar as definições dos crimes de charlatanismo e curandeirismo, as falsas promessas de “saúde” feitas no ambiente online continuarão a gerar muita receita para quem as faz, e punição apenas para quem as denuncia.
* Mauro Proença é nutricionista e colaborador da Revista Questão de Ciência, onde este artigo foi originalmente publicado