Nem o álcool nem os vírus por trás da hepatite: saiba qual é o maior inimigo do fígado
Trata-se de um processo silencioso capaz de levar o corpo ao colapso e cuja solução engloba de mudanças de hábitos a novos tratamentos
O nome é complicado, mas é bom conhecê-lo. Doença hepática esteatótica associada à disfunção metabólica — ou MASLD, na sigla derivada do inglês. Foi assim, com alcunha cientificamente estrondosa, que os especialistas rebatizaram o que popularmente se chamava “gordura no fígado”. Não se trata de mero detalhe técnico. A mudança se justifica pela melhor compreensão de um quadro muito mais complexo e perigoso do que se imaginava. Uma ameaça que está ganhando proporções epidêmicas. A MASLD já é o problema hepático mais prevalente em todo o mundo, afetando quase 40% da população. A ponto de estar ultrapassando o abuso de álcool e as hepatites virais como a maior causa de cirrose e câncer no fígado. O desafio é que, embora pegue carona na expansão da obesidade, a condição pode passar anos sem dar sintomas, sendo descoberta quando já existem lesões no órgão e outras desavenças em curso.
O fígado é a maior glândula do corpo, atuando na desintoxicação do organismo, no processamento dos remédios e na produção de dezenas de substâncias, que vão do colesterol às proteínas da coagulação do sangue. A exemplo de outros órgãos, não está imune ao depósito de gordura entremeada na região abdominal, o que se agrava com uma alimentação ancorada em ultraprocessados, o sedentarismo e o estresse. Mas essa gordura não é uma camada estática. Ela propicia um processo inflamatório que, caso não seja contido, mata células, forma cicatrizes (a fibrose) e, nos estágios mais críticos, evolui para cirrose, câncer e falência hepática. Não só: pessoas que convivem com a MASLD estão mais sujeitas a doenças cardiovasculares.
Um estudo recente revela que a incidência da esteatose hepática, outro apelido do quadro, aumentou 50% pelo planeta entre 1990 e 2019. A situação é particularmente alarmante na América Latina, Brasil incluído na conta, onde o índice de cidadãos com a condição chega a 44% da população. “É a região onde também se concentram os diagnósticos de casos mais avançados”, afirma a médica Cynthia Valério, presidente eleita da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (Abeso). Estilo de vida, predisposição genética e vulnerabilidade social — que influencia uma dieta inadequada, por exemplo — estariam associados à disseminação do colapso hepático.
O acúmulo de gordura no fígado, ressalte-se, é intimamente ligado ao excesso de peso. Daí o cenário preocupante no país, onde 68% da população se encontra com índice de massa corporal (IMC) elevado e 31% já receberia o diagnóstico de obesidade. “De todas as gorduras acumuladas fora de lugar, a com maior potencial de deixar um órgão doente é aquela que se deposita no fígado”, diz o hepatologista João Marcello de Araujo Neto, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Antes que se pense que a esteatose é uma sentença catastrófica, cabe esclarecer que nem todas as pessoas com o quadro vão chegar aos estágios mais graves. “Estimamos que 80% dos indivíduos com gordura no fígado não vão desenvolver fibrose”, afirma Araujo Neto. Isso não significa que as coisas estejam totalmente tranquilas para eles. Um dos motivos é que essa condição costuma andar de mãos dadas com outras alterações, como diabetes e aumento nos níveis de triglicérides, que colocam outros cantos do organismo em risco. E, se considerarmos que a obesidade é uma realidade para 1 bilhão de pessoas no globo e quatro em cada dez adultos desenvolvem esteatose hepática, mesmo a “minoria” que evoluiria para níveis mais severos, como a cirrose, representa milhões de indivíduos. Um horizonte que só deve se agravar: a projeção é que, em cinco anos, quase metade da população mundial esteja acima do peso.
A discussão sobre esse novo e traiçoeiro mal é recente e culminou na troca de nomenclatura após reuniões e debates entre os experts, que buscavam, inclusive, eliminar possíveis estigmas associados a ele. Antes chamada de doença hepática gordurosa não alcoólica, a MASLD busca deixar claro no nome que é um fenômeno ligado a descompassos no metabolismo desencadeados por hábitos pouco saudáveis. Sua ascensão para o topo das causas de ruína hepática se deu após dois movimentos positivos. Primeiro: o maior controle das hepatites virais, com a vacinação contra o tipo B e a chegada de tratamentos mais eficazes para o tipo C, hoje fornecidos gratuitamente no Brasil. O segundo elemento foi a diminuição no consumo excessivo de bebida alcoólica. O recente panorama do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa), divulgado em novembro, indicou queda de 13% nos óbitos por razões etílicas na população até 54 anos no período de 2010 a 2023, ainda que a faixa acima dos 55 anos tenha protagonizado um aumento nos números. A maior conscientização sobre os malefícios do álcool se somou ao cerco da medicina moderna contra a hepatite C, cuja incidência caiu 53% entre 2017 e 2021 no país. “Se voltarmos dez ou quinze anos atrás, veremos que todo episódio de fibrose hepática era relacionado ao vírus da hepatite e ao álcool. Agora a maioria tem a ver com uma condição relacionada ao excesso de peso”, diz o médico Rodrigo Moreira, da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (Sbem).
À medida que a MASLD ganhou proeminência como causadora e agravante de mazelas não só no fígado, cresceu o interesse dos profissionais de saúde por formas mais assertivas de diagnosticar, monitorar e deter a doença. Mesmo que o quadro evolua silenciosamente, hoje é possível levantar suspeitas ou detectar os danos hepáticos por meio de exames de sangue e imagem. O método considerado padrão-ouro é a elastografia por ultrassom ou ressonância, que analisa em detalhes o grau de gordura no órgão. Na ausência desse exame, uma forma de inferir o perigo é realizar um cálculo que os especialistas conhecem como FIB-4. “É uma fórmula em que colocamos a idade do paciente, valores de enzimas hepáticas e a dosagem de plaquetas para checar a probabilidade de ele ter fibrose no fígado”, explica Moreira, um dos autores da diretriz nacional de MASLD.
A compreensão do estágio em que o quadro se encontra tem como foco não só evitar o agravamento, mas conduzir o paciente a novos hábitos de proteção. “Já se sabe que da esteatose até a fase inicial de fibrose, o paciente passa a apresentar maior propensão a problemas cardiovasculares, como infarto, insuficiência cardíaca e acidente vascular cerebral”, afirma Valério. Isso quer dizer que a presença de gordura dentro do abdômen reflete a que ameaças estão sujeitas as artérias e o coração. Apesar dos riscos em jogo, uma das maiores dificuldades atuais em controlar a MASLD reside no fato de ela ainda não ser tão conhecida e valorizada pela população — e, às vezes, entre os próprios médicos não especialistas. Ainda assim, a preocupação tem ganhado escala e começado mais cedo. A discussão está mais madura em países como os Estados Unidos, onde se prevê que o surgimento da gordura no fígado entre crianças e adolescentes — de novo, no encalço da obesidade — possa criar uma geração de adultos que, na meia-idade, estarão com o órgão comprometido. “Como esse é um processo lento, a gente não vê na criança, mas já começa a visualizar no adulto jovem”, diz Araujo Neto. Em resumo: quanto mais cedo começa o ganho excessivo de peso, piores as consequências para o fígado e outras redondezas.
Por tudo isso, o emagrecimento costuma ser parte central do tratamento — uma orientação que se estende aos homens e mulheres “magros”, mas com barriga protuberante. Ajustes na dieta e prática regular de exercícios físicos são medidas inegociáveis — assim como evitar o álcool e outras drogas capazes de sobrecarregar o fígado. Na ausência, até então, de remédios especialmente desenhados para reparar o órgão, a promessa recaiu sobre as canetas para perda de peso. Estudos com a semaglutida (de Wegovy, o primo do Ozempic) demonstraram redução de 63% nos níveis de inflamação hepática e melhora de 36% na extensão das fibroses. Com esses resultados, nos EUA a medicação de ação semanal foi aprovada para essa finalidade. “A indicação se dirige especialmente àquelas pessoas com maior acometimento do fígado, mas não foram estudados pacientes com cirrose”, detalha a hepatologista Cristiane Villela Nogueira, professora da UFRJ e uma das pesquisadoras envolvidas. A expectativa também ronda um novo remédio, chamado resmetirom, já prescrito no mercado americano e o primeiro concebido para domar a esteatose. “Mas a espinha dorsal do tratamento continua sendo mudar a alimentação e se exercitar”, enfatiza Cristiane. Uma receita relativamente simples para escapar de um problema sorrateiro.
Publicado em VEJA de 28 de novembro de 2025, edição nº 2972









