O ‘colesterol amaldiçoado’: entenda o novo risco ao coração
Conheça a partícula de colesterol que despertou a preocupação dos especialistas por ser mais agressiva às artérias - e a busca por antídotos para domá-la
A história do colesterol é a história de um minucioso e contínuo avanço na medicina — trajetória em que os detalhes bioquímicos fazem toda a diferença. Em um passado não tão distante, os cardiologistas se preocupavam com a carga total dessas partículas gordurosas que trafegam pela corrente sanguínea. Depois, passaram a dividi-la entre a fração considerada “ruim” (o colesterol LDL) e a “boa” (o HDL). Mas o enredo não é tão simples assim. Existem diversos tipos de moléculas compondo essa família. E uma delas tem despertado a preocupação dos especialistas, agora mais do que nunca, em sucessivos estudos: é uma versão particularmente daninha do LDL, conhecida cientificamente como lipoproteína (a), ou Lp(a). Médicos americanos já lhe atribuíram até um apelido. “É o colesterol amaldiçoado”, diz o cardiologista André Zimerman, do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre, egresso de um grupo de pesquisa da Universidade Harvard, nos Estados Unidos.
Não é de hoje que se conhece essa encarnação ainda mais maligna do colesterol ruim. “Ela foi descrita pela primeira vez ainda na década de 1960, mas passou a atrair a atenção mais recentemente, quando estudos confirmaram sua associação com maior risco cardiovascular”, contextualiza o cardiologista Roberto Kalil Filho, presidente do conselho diretor do Instituto do Coração (InCor), em São Paulo. Estima-se que uma em cada cinco pessoas tenha níveis elevados de Lp(a) e um percentual dessa população possua taxas tão altas a ponto de fazer decolar a propensão a um infarto precoce, antes dos 40 anos. “Sabemos que essa partícula de colesterol é cinco vezes mais agressiva para as artérias”, afirma Zimerman. Isso significa que sua capacidade de entupir vasos, o estopim para um ataque cardíaco e outras complicações, é sensivelmente maior. Se o LDL é ruim, a Lp(a) é péssima.
E o que estaria por trás desse perigo à espreita no sistema circulatório? Embora alimentos como ovos e carnes ainda hoje sejam associados ao aumento dos níveis de gordura no sangue, já se tornou consenso que mais de 70% do colesterol é produzido pelo próprio corpo, no fígado. Ou seja, apesar de o estilo de vida influenciar nos exames, o DNA dita parte do problema. No caso da Lp(a), então, a genética é soberana. “Basta testar uma única vez na vida para visualizar seu risco”, diz Zimerman. Hoje, os exames de sangue que dosam a substância já estão disponíveis nos principais centros de análises clínicas do país. “Mas muitos médicos ainda não estão suficientemente familiarizados com sua relevância como fator de risco independente para infarto, AVC e problemas na válvula do coração”, diz Kalil Filho. “Outra dificuldade prática é a falta de padronização na solicitação do exame e o acesso restrito em determinados sistemas de saúde.”
Tudo indica, porém, que, com o alerta baseado nas provas da ciência e no apelo dos especialistas, a situação mude. A dosagem da Lp(a) inclusive deve entrar nas próximas diretrizes nacionais de cuidados cardiovasculares. A ideia é agregar uma nova informação para calcular o risco dos pacientes e intensificar (ou não) o plano de ação terapêutico. “A Lp(a) é mais um entre os diversos fatores que contribuem para as doenças por trás do entupimento das artérias”, afirma a cardiologista Viviane Giraldez, da Unidade Clínica de Lípides do InCor. Entender seu papel na propensão individual a desfechos potencialmente fatais como infarto e AVC se coloca, assim, como uma questão emergente — e capaz de enriquecer o check-up já composto da aferição da pressão arterial, da frequência cardíaca, dos níveis de triglicérides e glicose no sangue… Afinal, estamos falando da principal causa de morte no mundo: os problemas cardiovasculares respondem por mais de 30% dos óbitos no planeta.
A química ajuda a entender por que, na matemática por trás de um ataque cardíaco, a Lp(a) é tão “amaldiçoada”. A partícula é, na realidade, uma junção de um LDL com outra pequena molécula que tem uma vocação inflamatória. “Nessa configuração, ela aumenta a capacidade de formar as placas de gordura que entopem e lesam os vasos”, afirma Zimerman. Essa é a bomba que, ao explodir, interrompe o fluxo de oxigênio e nutrientes a órgãos nobres como o coração e o cérebro, resultando nos principais assassinos da humanidade.
Mas a Lp(a) é especialmente terrível por outra razão. Ao contrário das outras versões do colesterol “ruim”, ela não baixa significativamente com mudanças no estilo de vida e o uso das medicações tradicionais, como as estatinas, comprimidos considerados seguros e eficazes no manejo dos níveis de LDL. E isso levanta uma grande questão: o que o paciente pode fazer se descobrir que seus níveis de Lp(a) estão elevados? “Por enquanto, é preciso agir de forma indireta para baixar o risco global daquela pessoa”, diz Zimerman. Do que falamos na prática? “De intensificar a prática de exercícios, controlar ainda melhor as taxas de colesterol e a pressão arterial, entre outras coisas”, completa ele. O médico gaúcho compara esse achado nos exames de sangue ao histórico familiar da doença: não podemos alterar os genes que herdamos, mas, sim, cercar outros fatores que colaboram para um atentado cardiovascular.
Atualmente, em termos de intervenção direta na tal da Lp(a), o leque de opções é limitado. Há uma classe mais recente de remédios injetáveis para domar o colesterol LDL — os inibidores de PCSK9 — que atinge também a partícula da discórdia. “Eles reduzem os níveis de Lp(a) em 25 a 30%”, conta Giraldez. Com outra estratégia à vista, um estudo brasileiro demonstrou, entre voluntários com diagnóstico de colesterol alto familiar, que um cardápio que privilegia hortaliças, leguminosas, frutas e laticínios magros diminuiu em 14% as taxas da molécula. O trabalho, conduzido pelo Hospital do Coração (HCor), em São Paulo, testou uma dieta batizada de DICA Br, disponibilizada no site do Ministério da Saúde, que ainda prescreve moderação em massas e pães e restrição de carnes, manteiga e doces.
Felizmente, com a evolução da medicina, os dias de terror com a Lp(a) podem estar contados. No horizonte, é possível vislumbrar medicamentos com mira precisa e efeitos expressivos que já estão na fase de estudos. Espera-se que os resultados desses experimentos comecem a sair no próximo ano. As promessas se ancoram sobretudo numa tecnologia em alta nos domínios científicos: o uso do RNA. Trata-se de uma molécula diminuta que opera em nosso código genético e participa da tradução dos comandos do DNA em ações reais, expressas e viabilizadas pela confecção de proteínas. Assim como assistimos à chegada das vacinas de RNA durante a pandemia de covid-19, os estudiosos apostam em ramificações dessa proposta para atacar condições que vão de colesterol alto a câncer. “Uma das terapias de RNA avaliadas para a lipoproteína (a) conseguiu baixar em 99% os níveis da substância”, relata Zimerman, que integrou o grupo de coordenação de um estudo na área.
A partir das conclusões dessas pesquisas controladas será possível entender até que ponto derrubar a Lp(a) se reverte em benefícios cardiovasculares para valer — ou seja, reduz a incidência e as mortes por infarto, AVC e companhia. Na prática, teremos em mãos um tratamento específico para conter o colesterol “amaldiçoado”. Com a vantagem de poder ser administrado com injeções trimestrais ou semestrais. Para quem pensa que essa solução é futurista ou sonhadora demais, basta lembrar que já existe no mercado privado brasileiro um tratamento à base de RNA para pacientes com elevado risco cardíaco, o inclisirana, destinado a baixar o colesterol LDL com duas picadas por ano.
No fundo, a ascensão da Lp(a) representa não só como a medicina avança, de passo em passo, durante longos anos de investigação e aprimoramento tecnológico, mas também como a descoberta de pequenas peças circulando pelo corpo humano se mostra essencial para desbravar e vencer as principais doenças que atormentam a humanidade. O colesterol “amaldiçoado” não está sozinho nessa missão altamente destrutiva. Há outros fatores, conhecidos e desconhecidos, que interferem nessa equação que coloca a saúde sob ameaça. Ao menos, com a informação e as ferramentas certas, seremos abençoados com formas de deter as armadilhas plantadas em nossos vasos e em nossos caminhos.
Publicado em VEJA de 1º de agosto de 2025, edição nº 2955

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