O alto custo da pseudociência
Desconfiança em métodos comprovados e sua substituição por tratamentos alternativos têm reduzido vidas e alimentado um mercado de lucros estratosféricos

A história de Paloma Shemirani deveria nos incomodar profundamente. Aos 23 anos, recebeu um diagnóstico de linfoma não Hodgkin com cerca de 80% de chance de cura por meio da quimioterapia. Morreu sete meses depois, após recusar o tratamento convencional e optar por terapias alternativas como a “terapia Gerson” (uma combinação de dietas restritivas, sucos e enemas de café). Seus irmãos, Gabriel e Sebastian, consideram que Paloma morreu por causa das teorias conspiratórias da mãe, Kate Shemirani, uma ex-enfermeira que se transformou em influenciadora antivacina e promotora da “medicina alternativa”.
O relato da BBC sobre o caso é devastador. Kate Shemirani chegou a enviar mensagens em caixa alta para o namorado de Paloma: “DIGA A PALOMA PARA NÃO ASSINAR, NEM CONSENTIR VERBALMENTE COM QUIMIO OU QUALQUER TRATAMENTO”. Os funcionários do hospital registraram por escrito sua “preocupação com a influência materna” sobre a paciente, mas reconheceram que Paloma tinha capacidade legal para tomar suas próprias decisões. Uma jovem que foi gradualmente convencida de que a medicina que poderia salvá-la era, na verdade, sua inimiga.
Esse caso ilustra de forma trágica um fenômeno que observo com frequência. Com uma regularidade quase semanal, encontro comentários como “a indústria farmacêutica não quer que a cura do câncer seja encontrada” ou, ainda mais dramaticamente, “eles até matam quem encontra a cura”.
Essas afirmações são, até certo ponto, compreensíveis porque se apoiam em uma desconfiança coletiva em relação a grandes corporações. O problema é que essa postura cética acaba sendo manipulada e direcionada para alimentar a desinformação sobre como a ciência médica funciona.
O que os dados mostram
Para compreender a dimensão real do problema, podemos examinar um estudo publicado no periódico JAMA Oncology em 2018. Os pesquisadores analisaram dados de quase 2 milhões de pacientes diagnosticados com cânceres curáveis (mama, próstata, pulmão e cólon) nos Estados Unidos entre 2004 e 2013, provenientes de mais de 1.500 centros de tratamento oncológico credenciados. Utilizaram uma metodologia que fez ajustes para variáveis como idade, estágio clínico, comorbidades, tipo de seguro, etnia e tipo de câncer.
Na amostra estudada, identificaram 258 pacientes que utilizaram medicina complementar, definida especificamente como “tratamentos não comprovados administrados por pessoal não médico”, em adição ao tratamento convencional. Esse número, aparentemente pequeno, na verdade reflete a dificuldade de documentar o uso dessas práticas, já que muitos pacientes não revelam aos médicos que estão usando terapias alternativas e, quando revelam, nem sempre isso é registrado nos prontuários.
Os resultados são preocupantes. Pacientes que optaram por medicina complementar apresentaram taxas maiores de recusa dos tratamentos convencionais: 7% recusaram cirurgia (contra apenas 0,1% do grupo controle), 34,1% recusaram quimioterapia (contra 3,2%), 53% recusaram radioterapia (contra 2,3%) e 33,7% recusaram hormonioterapia (contra 2,8%).
Mais importante: a sobrevida em 5 anos foi de 82,2% no grupo que usou medicina complementar, comparado a 86,6% no grupo controle, uma diferença absoluta de 4,4% que, embora possa parecer modesta, representa milhares de mortes evitáveis quando extrapolada para a população geral, considerando os aproximadamente 700.000 novos casos de câncer diagnosticados anualmente no Brasil.
A diferença na mortalidade desapareceu quando os pesquisadores ajustaram os dados para levar em conta a recusa aos tratamentos convencionais. Ou seja: não é a intervenção complementar em si que parece aumentar a mortalidade, mas sim a tendência sistemática dos usuários a recusar tratamentos com eficácia demonstrada cientificamente.
Outro aspecto interessante do estudo foi o perfil demográfico dos usuários da “medicina complementar”. Os pacientes que optaram por essas terapias eram, em média, mais jovens, com maior nível educacional, com melhor acesso a seguros de saúde privados e tinham renda familiar mediana mais alta. Um perfil semelhante ao de Paloma Shemirani.
Ideias conspiratórias
Voltemos à frase que ouço quase semanalmente: “a indústria farmacêutica não quer que a cura do câncer seja encontrada”. Apesar de soar impactante, ela ignora que:
1. Muitos cânceres já são curados
Vários tipos de câncer apresentam, hoje, altas taxas de cura. O câncer de mama detectado precocemente tem taxa de sobrevivência superior a 90%. Leucemias infantis, que eram praticamente sentenças de morte há poucas décadas, hoje têm taxas de cura acima de 80%. Cânceres de tireoide apresentam sobrevida de 5 anos superior a 98%. Tumores testiculares, mesmo quando metastáticos, têm taxa de remissão acima de 90 % nos casos de bom prognóstico. Melanomas detectados precocemente têm taxa de sobrevida de 99%.
Se realmente existisse uma conspiração corporativa para esconder curas e manter pacientes doentes indefinidamente, como explicar esses avanços amplamente documentados, celebrados e divulgados? Seria uma conspiração curiosamente incompetente, que “esquece” sistematicamente de suprimir sucessos em determinadas áreas, enquanto foca obsessivamente em outras?
Ou, talvez, exista apenas o desenvolvimento científico naturalmente desigual e progressivo que caracteriza toda pesquisa médica. Alguns problemas são mais fáceis de resolver do que outros, alguns órgãos são mais acessíveis cirurgicamente, alguns tumores respondem melhor à quimioterapia. É a realidade biológica sendo confundida com conspiração.
2. “Câncer” não é uma doença só
Aqui reside talvez o maior erro conceitual que alimenta teorias conspiratórias: a ideia de que existe “o câncer” como entidade única. Na realidade, o termo engloba mais de 200 doenças molecularmente distintas, cada uma com características genéticas, comportamentais e terapêuticas próprias, diferenças amplificadas pelas particularidades do sistema imune de cada indivíduo.
Um adenocarcinoma de pulmão é tão diferente de uma leucemia linfoide aguda quanto uma gripe é diferente de malária. Ambas são “doenças”, mas seus mecanismos, tratamentos e prognósticos não têm quase nada em comum. Procurar uma “cura universal” para o câncer é como buscar um único remédio que cure simultaneamente gripe, tuberculose, malária, meningite, AIDS e sífilis.
3. O paradoxo econômico
Aqui entramos em um paradoxo econômico fundamental. Uma empresa que desenvolvesse uma cura “garantida e eficaz” para apenas um dos cânceres mais comuns já se tornaria automaticamente uma das corporações mais valiosas da história. O mercado global de oncologia de fato movimenta bilhões de dólares anuais. Uma indústria detentora da patente de uma cura revolucionária para, digamos, câncer de pulmão, poderia cobrar praticamente qualquer preço e ainda assim ter demanda mundial garantida.
Por que uma corporação abriria mão, voluntariamente, do maior lucro da história da medicina? A lógica conspiratória exigiria que todas as grandes farmacêuticas do mundo (empresas que competem ferozmente entre si por fatias de mercado, que processam umas às outras por violações de patente, que fazem espionagem industrial) mantivessem um pacto secreto inquebrantável para renunciar a trilhões de dólares em lucros.
4. Quem lucra com a conspiração?
Quem mais fatura com a desconfiança sistemática na medicina convencional são os vendedores de “curas alternativas”. O caso de Kate Shemirani é um estudo de caso perfeito do que chamei anteriormente aqui de Lobby Camaleão: a estratégia de usar críticas a corporações para blindar suas próprias práticas comerciais questionáveis.
Kate cobra 70 libras (cerca de R$ 520) pela anuidade em seu site e 195 libras (cerca de R$ 1.450) por consulta individual, vendendo desde sementes de damasco com “potenciais benefícios à saúde” até programas personalizados de 12 semanas para pacientes com câncer.
O mercado global de medicina alternativa também movimenta bilhões de dólares anuais, crescendo a taxas superiores a 20% ao ano. Tratamentos não comprovados, suplementos “milagrosos”, terapias pseudocientíficas e “superalimentos” prosperam porque não precisam demonstrar eficácia ou segurança por meio de estudos rigorosos. É um mercado que opera com margens de lucro estratosféricas (afinal, quanto custa produzir um frasco de “água energizada” ou um programa de “desintoxicação” baseado em sucos)?
5. A persistência de tratamentos agressivos
Mas por que, então, médicos às vezes insistem em quimioterapias, mesmo em casos muito avançados, com prognósticos sombrios? Por que continuam oferecendo “mais uma linha de tratamento” quando as chances de benefício são estatisticamente mínimas? É porque estão a serviço da indústria?
A resposta está na interseção complexa entre nossa dificuldade cultural coletiva em aceitar a finitude da vida, a evolução ainda incipiente dos cuidados paliativos no Brasil e as pressões psicológicas inerentes à prática médica. É, na verdade, uma limitação humana que reflete a relação cultural com a morte. Profissionais de saúde são treinados para curar, para intervir, para “fazer alguma coisa”. A ideia de que às vezes a melhor medicina é não medicar vai contra décadas de condicionamento.
Pacientes e famílias, por sua vez, tendem a interpretar a ausência de tratamento ativo como “desistência” ou “abandono”. Há uma pressão social e emocional enorme para “lutar até o fim”, mesmo quando essa luta se torna um prolongamento da morte, não da vida. É um reflexo do que já discutimos sobre medicina heroica: a pressão psicológica para agir, mesmo quando a melhor ação seria aceitar que chegamos aos limites do que a medicina pode oferecer.
6. Uma questão real
Há um problema documentado e crescente na oncologia moderna que merece discussão séria: o overdiagnosis, ou sobrediagnóstico. Exames cada vez mais sensíveis detectam alterações celulares que tecnicamente se enquadram na definição de “câncer”, mas que nunca causariam problemas clínicos significativos se deixadas sem tratamento.
Essas lesões indolentes acabam sendo tratadas como câncer “verdadeiro”, submetendo pacientes a procedimentos invasivos, ansiedade, custos e efeitos colaterais para tratar doenças irrelevantes.
Isso acontece especialmente em programas de rastreamento mal planejados e na epidemia crescente de check-ups desnecessários (um fenômeno que já abordamos quando discutimos prevenção quaternária). Paradoxalmente, alguns dos “sucessos” oncológicos contemporâneos podem refletir mais essa capacidade de detectar e tratar cânceres que nunca precisariam ser tratados do que avanços reais na cura de cânceres clinicamente significativos.
Mas é importante notar: esse é um problema real que a comunidade médica reconhece e tenta corrigir. E como? Não através de conspiração, supressão de informações ou negação, mas por meio de pesquisa científica aberta, debate transparente da literatura médica, revisão de diretrizes e educação continuada de profissionais.
Considerações finais
Teorias conspiratórias sobre câncer sempre pedem para que o público “pesquise por si mesmo” e “questione tudo”, mas raramente apresentam evidências que resistam ao escrutínio científico rigoroso. Quando questionadas especificamente sobre mecanismos biológicos, metodologias estatísticas, revisão por pares ou replicabilidade de resultados, as alegações invariavelmente se revelam baseadas em testemunhos tendenciosos, mal-entendidos conceituais ou desinformação deliberadamente fabricada.
É uma forma de ceticismo performático: usa a linguagem e os valores do questionamento científico legítimo, mas de forma seletiva, aplicando padrões de evidência assimétricos que exigem provas extraordinárias para alegações convencionais e aceita evidências mínimas para alegações extraordinárias.
A medicina oncológica enfrenta limitações reais que merecem discussão honesta e críticas construtivas: custos que tornam tratamentos inacessíveis para milhões de pessoas, efeitos colaterais que podem ser fisicamente e emocionalmente devastadores, protocolos que às vezes prolongam sofrimento desnecessariamente, acesso desigual baseado em geografia e classe, conflitos de interesse na pesquisa, sobrediagnóstico etc.
Essas são questões complexas e importantes que se resolvem com mais ciência de qualidade, transparência nas pesquisas, investimento público em cuidados paliativos, políticas de saúde mais equitativas e regulação sanitária rigorosa. São problemas que exigem soluções sofisticadas, baseadas em evidências e implementadas através de processos democráticos transparentes. E que, definitivamente, não se resolvem com teorias conspiratórias que, no final das contas, enriquecem picaretas modernos e matam pessoas como Paloma Shemirani.
André Bacchi é professor adjunto de Farmacologia da Universidade Federal de Rondonópolis. É divulgador científico e autor dos livros “Desafios Toxicológicos: desvendando os casos de óbitos de celebridades” e “50 Casos Clínicos em Farmacologia” (Sanar), “Porque sim não é resposta!” (EdUFABC), “Tarot Cético: Cartomancia Racional” (Clube de Autores) e “Afinal, o que é Ciência?…e o que não é” (Editora Contexto).