O impacto para a ciência do sistema que permitiu jovem voltar a andar
O êxito da experiência de cientistas suíços ilustra os avanços feitos na área nos últimos anos
Não demorou muito para que o italiano Michel Roccati percebesse algumas sensações nas panturrilhas e coxas. Foi logo depois de acordar da cirurgia de quatro horas para a implantação dos eletrodos na medula espinhal que, ele sonhava, lhe devolveriam os movimentos dos membros inferiores perdidos havia cinco anos em decorrência de um acidente de moto. No começo, eram como se fossem pontadas. Depois, formigamentos, contrações musculares, até que ele ficou de pé e deu seus primeiros passos. Estava ainda no quarto do hospital quando o sonho se realizou. Ao lado dele se encontravam os cientistas do Instituto de Tecnologia de Lausanne e cirurgiões do hospital universitário da cidade suíça que o acompanharam na incrível jornada que ficará marcada como a primeira da história da medicina a devolver a capacidade de andar a alguém com rompimento praticamente total da comunicação entre o cérebro e as pernas. O feito está descrito na edição da semana passada da Nature, uma das mais prestigiadas publicações científicas do mundo, e encheu de entusiasmo pacientes e pesquisadores.
Com toda a razão. É impossível imaginar a felicidade de Michel em ganhar de volta uma habilidade física tão importante e é igualmente difícil chegar perto de entender a expectativa gerada em outros milhões de pessoas incapacitadas de andar. Nunca a ciência chegou tão perto de algo tão fabuloso. A curta caminhada de Michel representa, portanto, um salto imenso em uma área médica que até décadas atrás pouco avançava. E ela só foi possível graças a uma associação de fatores que inclui a compreensão de como funciona o sistema que permite a realização dos movimentos — da intenção à execução —, a sofisticação da medicina bioeletrônica e o desenvolvimento da inteligência artificial.
O caso do jovem italiano resume tudo isso. Depois do acidente, Michel perdeu a sensibilidade nas pernas porque um trecho do cordão de fibras nervosas que liga o cérebro a outras partes do corpo foi gravemente atingido. É por essa estrutura que o cérebro recebe e transmite informações por meio de sinais elétricos. Com a comunicação rompida, as ordens cerebrais não chegam aonde deveriam. Há tempos se tenta consertar a ponte por meio do implante de eletrodos. Os dispositivos emitiriam disparos elétricos nas regiões afetadas, restabelecendo a conversa entre o cérebro e o restante do organismo. Explicando assim, parece simples, mas a prática mostrou que eles precisam disparar sinais na intensidade e o ritmo corretos. Antes de tudo, é necessário criar recursos capazes de ler, traduzir e especificar as intenções dos movimentos. Não se percebe, mas o ato de andar implica o acionamento de vários grupos musculares e articulações e tudo deve ser sincronizado. O esquema criado pelos suíços envolve o uso de inteligência artificial para fazer as leituras e interpretações dos desejos manifestados por Michel e os eletrodos são acionados somente quando necessário. “Ativamos a medula espinhal do mesmo jeito que o cérebro faz”, explica o neurocientista Grégoire Courtine, idealizador do projeto.
Outros dois grupos desenvolvem sistemas semelhantes. Um está na Clínica Mayo e o outro na Universidade de Louisville, ambas nos Estados Unidos. Há três anos, os times publicaram resultados bastante promissores. Na Mayo, um paraplégico andou em esteira ergonômica 43 semanas após treinamento muscular e estimulação elétrica. Em Louisville, duas de quatro pessoas que recebiam estimulação elétrica contínua ficaram aptas a caminhar com ajuda de andadores depois de quinze a 85 semanas. Na Suíça, a resposta de Michel foi imediata. Uma das primeiras coisas que fez ao deixar o hospital foi ir a um bar tomar uma bebida de pé, no balcão. Ele retomou a autonomia para andar — usa um andador como auxílio — e segue firme no programa de fortalecimento muscular. Enquanto isso, o time suíço prepara outros pacientes para os experimentos e toma o cuidado de ressaltar que não se chegou à cura das lesões medulares e que, neste momento, o aparato usufruído por Michel não é acessível. Mas avisam que o passo do rapaz foi apenas o primeiro. Assim, eles cuidam de entregar a dose correta de realidade e esperança a quem espera a chance de ficar de pé novamente.
Publicado em VEJA de 23 de fevereiro de 2022, edição nº 2777