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O oportunismo dos radicais em Ottawa

O Canadá tremeu nas últimas semanas, sacudido por uma onda de protesto como nunca se viu

Por Lizia Bydlowski
Atualizado em 4 jun 2024, 12h36 - Publicado em 18 fev 2022, 06h00

País ordeiro e certinho até demais — a fama é de sem graça mesmo —, o Canadá tremeu nas últimas semanas, sacudido por uma onda de protesto como nunca se viu. De repente, quase que do nada, caminhoneiros insatisfeitos paralisaram a plácida capital, Ottawa, e fecharam o trânsito em alguns pontos da fronteira, um deles crucial para o comércio com os Estados Unidos. Governo e polícia congelaram (o que não é difícil por lá), sem saber como reagir, torcendo para a confusão ser vencida pelo cansaço. Não foi, e na segunda-feira 14 o primeiro-ministro Justin Trudeau invocou, pela primeira vez desde que foi criada, há cinquenta anos, a Lei das Emergências, que lhe dá poderes excepcionais de restrição de liberdades civis. “Não vamos permitir que atividades ilegais e perigosas sigam acontecendo. É hora de ir para casa”, disse.

O disparo para o protesto foi um decreto do governo exigindo apresentação de comprovante de vacina de todos os motoristas de caminhão que cruzassem a fronteira com os Estados Unidos. O pessoal chiou — mais por causa da burocracia do que por melindres ideológicos. Não tardou a se divulgar a ideia de um “comboio da liberdade” se dirigir para Ottawa e pressionar pelo fim da exigência. Os caminhões chegaram no dia 28 de janeiro — e, com eles, o caos. Em pouco tempo, outro bloqueio se instalou na ponte que liga a canadense Windsor à americana Detroit, por onde passam 8 000 caminhões por dia. A interdição de uma semana fechou fábricas e montadoras e esvaziou prateleiras em supermercados, até a polícia resolver agir: reforçada por mais 1 000 agentes, avançou pela barreira, prendendo quem resistia à ordem de sair e guinchando veículos. Depois disso, outros bloqueios menores na fronteira (em um deles foi encontrado um pequeno arsenal) foram se esvaziando. Em Ottawa, no entanto, até a quinta 17 o protesto seguia forte.

Sem uma única barreira à vista, com uns poucos policiais observando (de tão criticado, o comandante de polícia Peter Sloly se demitiu), os motoristas estacionaram cerca de 400 caminhões nas ruas em volta do Parlamento e neles se acomodaram, com cama, aquecimento e outros confortos. A essa altura, o movimento já havia sido encampado pela direita obscurantista — com um número crescente de países suspendendo os últimos protocolos anticoronavírus e esfiapando uma de suas principais bandeiras, a turma tratou de aproveitar a chance que lhe apareceu de pôr a boca no trombone. Uma multidão de apoiadores se uniu aos caminhoneiros, exigindo desde o fim das restrições até a pura e simples deposição de Trudeau, em clima de festa. Galões de combustível circulavam por toda parte, embora abastecer os veículos parados esteja proibido, e as buzinas soavam sem parar (outro ato proibido), para desespero dos 15 000 moradores da região.

Entre os líderes aparentes do movimento, que deram entrevistas coletivas em hotéis, circulam pouquíssimos caminhoneiros. Vários eram ex-­policiais ou ex-militares, o que explicaria o azeitado esquema de organização, que incluiu distribuição de comida, banheiros portáteis e palavras de ordem rapidamente acatadas. O ex-­presidente Donald Trump expressou apoio entusiasmado aos “grandes caminhoneiros canadenses”, que também receberam incentivos do bilionário Elon Musk. O vazamento de dados de uma plataforma de arrecadação para o movimento revelou doações no total de 8 milhões de dólares, metade vinda do Canadá, metade dos Estados Unidos.

Em diversos países, mensagens nas redes sociais convocaram manifestações de apoio ao “comboio da liberdade”, sem muita adesão — até porque, em muitos deles, as restrições já estão sendo suspensas. No próprio Canadá, diversas províncias, com a população vacinada e os contágios em queda, começam, elas também, a suspender a exigência de máscara e comprovante de vacinação. Para desidratar o “comboio da liberdade”, Trudeau dispõe de poderes como o de quebrar sigilos e congelar transações bancárias, proibir protestos, cassar a carteira dos caminhoneiros rebeldes e impedi-­los de entrar nos Estados Unidos, entre outras ações. A polícia avisou que vai prender pessoas e guinchar qualquer veículo que esteja perturbando a ordem. Enquanto o protesto resistir, porém, a direita furiosa vai espremer a pandemia até a última gota.

Publicado em VEJA de 23 de fevereiro de 2022, edição nº 2777

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