O risco do consumo exagerado de bebidas alcoólicas na quarentena
Happy hours virtuais regadas a álcool crescem como alternativa de relaxamento. Mas é sempre bom seguir aquela conhecida recomendação: beba com moderação
Bares, casas noturnas e restaurantes estão fechados em todo o mundo, e até a sagrada Oktoberfest de Munique, o maior festival de cerveja do planeta, foi cancelada em razão do coronavírus. Dentro de casa, uma alternativa ao isolamento social têm sido as reuniões de amigos via videoconferência. Não há regras preestabelecidas, é claro, mas a maioria das happy hours virtuais acaba regada a bebidas diversas. Seja com vinho, seja com cerveja ou destilados — há nas redes as mais variadas receitas —, pegou a moda dos “quarentinis”, como foram apelidados os refrescos alcoólicos que ajudam a fazer a pandemia passar, digamos, de forma mais suave. “Faço pelo menos uma reunião virtual por semana. Não substitui um encontro presencial, mas é legal. Até me arrumei para a última, porque era um aniversário, mas cheguei atrasado”, diz o coordenador de marketing paulistano Leonel de França, de 30 anos. “Geralmente tomo cerveja, mas dessa vez programamos que cada um prepararia um drinque e elegemos o melhor, que levava gim, café e suco de tangerina.”
Em tempos de incerteza, o álcool pode ser tanto uma válvula de escape — “O uísque é o melhor amigo do homem, o cachorro engarrafado”, na espirituosa definição de Vinicius de Moraes — quanto um enorme perigo, a depender do número de doses. Não por acaso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou um ruidoso alerta sobre os riscos da bebedeira durante o confinamento. Eles existem, sempre existiram, e por isso houve quem identificasse algum exagero oportunista na postura urgente das autoridades (embora a embriaguez não raro resulte em inaceitável violência). Cautela é sempre bom, a moderação é compulsória, mas não dá para dizer, agora, que saborear um vinho no fim do dia tenha se tornado um problema associado à quarentena. Beber, enfim, pouco e com prazer é como comer bem — sinônimo de convivência, atalho para o bem-estar.
Tomar umas e outras depois de um dia estressante não é novidade, insista-se. Na Finlândia, por exemplo, é um costume nacional que ganhou até nome próprio: kalsarikännit (beber em casa sozinho, em roupa de baixo). Mas há, hoje, algo de especial — como se a dificuldade de enxergar o futuro próximo impusesse alguma pressa em transportar para a sala de estar o que antes só se fazia na rua. Há um mês, quando os primeiros pubs baixaram as portas na Inglaterra, houve corrida aos mercados para garantir estoques particulares. Em outros países, caso da Austrália e dos Estados Unidos, as chamadas liquor stores, estabelecimentos especializados em artigos para drinques, foram consideradas pelas autoridades essenciais, tal qual farmácias e supermercados. “Em Nova York, há até filas em algumas lojas”, contou a VEJA o engenheiro ambiental brasileiro Eduardo Nepomuceno, que vive há três anos na cidade mais atingida pela pandemia em todo o planeta. O ato administrativo evoca a famosa frase do ex-presidente Franklin Delano Roosevelt (1882-1945). “O que os Estados Unidos precisam agora é de um drinque”, disse FDR ao pôr fim à Lei Seca, em 1933. Banir o álcool provocou graves efeitos colaterais na economia e na segurança pública americanas, uma vez que a produção e o contrabando ilegal de bebidas causaram mortes por intoxicação e enriqueceram gângsteres como Al Capone.
Não há, ainda, estatística que meça nitidamente a mudança comportamental em torno dos copos no Brasil. Mas existem indícios que ajudam a iluminar esse novo tempo, um interregno de vida, impositivo mas necessário. O Grupo Pão de Açúcar registrou alta de quase 30% nas vendas de vinho durante o feriado da Páscoa, em suas lojas físicas e no e-commerce, na comparação com o mesmo período de 2019. A preferência pelo vinho traz algo minimamente saudável — é uma bebida de compartilhamento, em que vale mais a companhia do que a qualidade do tinto ou do branco. Em um artigo para o The New York Times, o crítico Eric Asimov fez uma interessante reflexão ao se debruçar sobre a condição dos solitários, agora realmente sozinhos.
Para ele, como jocosamente intuiu Vinicius com um destilado, embora Vinicius bebesse demais, o vinho pode representar o conforto possível, e não seria correto apenas iluminar o problema (real) do exagero. Assim escreveu Asimov, ancorado em uma máxima muito conhecida da atriz sueca Greta Garbo: “Gostar de um bom vinho, nos dizem, requer um parceiro. A alegria, o senso de descoberta ocorrem quando são coletivos. Não sei como Garbo se sentiu em relação ao vinho, mas ao abrir uma garrafa você não quer ficar sozinho”.
Talvez por não querer ficar sozinho é que o cantor sertanejo Gusttavo Lima apareceu em cena numa live (ah, as lives!) bebendo muito, embora tenha se mantido firme, cantando e fazendo piada, além de doar milhares de reais a obras de caridade. O Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) não gostou e abriu uma representação ética contra as transmissões. O músico se disse “censurado” por não poder extravasar — “tirar o lençol do palhaço”, em seu vocabulário. “Acho que uma live engessada e politicamente correta não tem graça”, desabafou. “O bom são as brincadeiras, levar alegria e alto-astral às pessoas que estão agoniadas neste momento.” Até o presidente Jair Bolsonaro se pronunciou sobre o evento, dizendo que o cantor foi “injusta e covardemente atacado”. Houve mesmo extrapolação no ataque e na defesa ao ídolo popular — mas convém evitar, de fato, outro excesso: o de álcool. E, para isso, a rigor não é preciso realmente outro alerta da OMS, como se a pandemia tivesse deflagrado uma nova ordem de problemas no consumo. Talvez não. Mas convém ficar atento a um trecho particular do comunicado da OMS. A entidade fez questão de desmentir a tese, que grassou como fake news, segundo a qual bebidas com alto teor alcoólico poderiam matar o coronavírus, tal qual o álcool em gel na superfície das mãos. Diz Leonardo Weissmann, infectologista do Instituto de Infectologia Emílio Ribas (SP): “O uso excessivo é um fator de risco para a síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA), uma das complicações mais graves da Covid-19”. Isso posto, cuidado. De resto, vale zelar cautelosamente pelo paladar.
Publicado em VEJA de 29 de abril de 2020, edição nº 2684