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Os avanços da ciência que podem pôr fim ao sofrimento da enxaqueca

Em nenhum momento da história as descobertas foram tão notáveis quanto nos últimos vinte anos, o que leva à perspectiva de que essa dor vai, sim, passar

Por Paula Felix Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 11h50 - Publicado em 7 out 2022, 06h00

Em um de seus escritos, o poeta escocês William Dunbar (1460-1530) descreveu, com palavras que poderiam ser usadas por qualquer paciente da atualidade, um sofrimento lancinante e antigo conhecido da humanidade. “Tão dolorosamente a enxaqueca me incapacita, perfurando minha testa como qualquer flecha, que mal posso olhar para a luz.” Muito antes, por volta de 400 a.C., Hipócrates falara da aversão à luz que acompanha as crises dessa que é a segunda doença neurológica mais comum, afetando cerca de 1 bilhão de pessoas — a primeira é o acidente vascular cerebral — e a sexta enfermidade mais incapacitante pela escala da Organização Mundial da Saúde. Do pai da medicina até hoje, muito foi descoberto a respeito da enfermidade, mas ainda há bastante a ser compreendido.

arte enxaqueca

A enxaqueca permanece sendo um quebra-cabeça gigante, mas em nenhum momento da história os avanços foram tão notáveis quanto nos últimos vinte anos, o que leva à perspectiva de que essa dor vai, sim, passar. Não poderia haver momento mais oportuno para esse cenário. A pandemia de Covid-19, como se sabe, agravou diversas condições de saúde e a enxaqueca foi uma delas. Estudos apontaram o crescimento no número de pessoas que passaram a apresentar crises frequentes em quem já tinha a doença. O medo causado pela infecção pelo coronavírus foi determinante nesse movimento, como demonstra um estudo publicado ainda no primeiro ano da pandemia, em 2020, no Journal of Headache and Pain. Entre os pacientes que não haviam sido contaminados, 12% relataram novos eventos. O índice subiu para 33,2 % entre infectados. No Brasil, uma pesquisa da Universidade do Estado da Bahia apontou um aumento de episódios com duração de sete a catorze dias por mês. O índice passou de 7,3% para 24,1% entre dezembro de 2020 e junho de 2021. A explicação para essa elevação é simples. A manifestação de sintomas está associada ao estresse e à ansiedade, duas condições mentais que aumentaram exponencialmente nos últimos dois anos e meio.

A enxaqueca tem características específicas, não é uma dor qualquer. Ela desponta geralmente de um lado da cabeça, de forma latejante, e pode ser acompanhada de aura (distúrbios visuais), aversão à luminosidade e náuseas. Seus gatilhos são bem delineados: além do estresse e da ansiedade, estão a falta de sono, jejum prolongado de alguns alimentos, como chocolate, bebidas com cafeína ou comidas gordurosas. Essas informações, de teor mais básico, estavam postas há algum tempo. O grande progresso contra a doença, e que fez com que o diagnóstico e o tratamento dessem um salto gigantesco, deu-se recentemente a partir da união de informações vindas da genética e do entendimento apurado do processo que leva ao desencadeamento do incômodo. O conhecimento garimpado nesses campos permitiu o estabelecimento da hereditariedade como fator de risco importante — se um ou os dois pais tiverem a condição, a probabilidade de o filho apresentá-la varia de 50% a 75%. A identificação de uma teia de variantes genéticas e de substâncias fabricadas a partir delas representa um avanço.

SEM GLAMOUR - Khloé Kardashian: óculos para atenuar a luminosidade -
SEM GLAMOUR - Khloé Kardashian: óculos para atenuar a luminosidade – (Rachpoot/Bauer-Griffin/GC Images/Getty Images)
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Dados desse quilate levaram à criação de um dos principais progressos no alívio da dor até agora, os anticorpos monoclonais contra a enxaqueca. A categoria é usada contra várias enfermidades — há diversos em uso no combate ao câncer, por exemplo — por apresentar a capacidade de agir sobre moléculas associadas especificamente à doença em questão. No caso do anticorpo contra a enxaqueca, o foco é uma molécula cuja concentração, elevada durante as crises, está relacionada à dor. Injetável, a medicação bloqueia sua ação. A alternativa, disponível no Brasil, é para aqueles que tentaram tudo e, mesmo assim, continuam sofrendo. “É um tratamento para pacientes que não respondem a outras terapias”, explica o neurologista Alex Baeta, da Beneficência Portuguesa, de São Paulo. “Ele age reduzindo a intensidade da dor e espaçando as crises.” O aposentado paulista Álvaro Roncolato, de 83 anos, utiliza o remédio há cinco meses, período no qual experimenta alívio sem igual. “Mudou a minha vida, passo 27 dias sem crises”, comemora.

Os anticorpos chegaram ao mercado em 2018. De lá para cá, apareceram outras boas opções, como o spray nasal aprovado pela Food and Drug Administration, agência regulatória americana, contendo uma substância que atenua a dor em alguns casos quinze minutos depois de aplicado, e a infusão intravenosa de xilocaína, capaz de acabar com cerca de 90% das crises, além de espaçá-las. A última e extraordinária fronteira é descobrir o efeito da Cannabis medicinal. Os efeitos começam a ser revelados — uma revisão de pesquisas feitas entre 1987 e 2020 apontou dados “encorajadores”. Foram observados relatos de redução de dor que variaram de 50% a 86% dos casos.

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Não por acaso, dada a vastidão de boas notícias, a Fundação Americana para Enxaqueca afirmou vivermos “tempos emocionantes para os pacientes”. Diz a influenciadora digital Khloé Kardashian, que sofre com a dor: “Não há nada de glamoroso em usar óculos escuros para estancar a luz que castiga os olhos durante as crises”.

Publicado em VEJA de 12 de outubro de 2022, edição nº 2810

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