O novo tratamento aprovado pela Anvisa contra o colesterol alto
Por meio de duas ou três injeções ao ano, medicação derruba os níveis dessa gordura no sangue e amplia a proteção do coração
![AGULHA INOVADORA - Arma genética: nova droga “ensina” o corpo a reduzir o nível de colesterol no sangue](https://beta-develop.veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2023/07/GettyImages-1181127207.jpg.jpg?quality=90&strip=info&w=1280&h=720&crop=1)
Décadas de cultivo de meios para desvendar o DNA humano resultam agora na colheita de novas terapias e vacinas baseadas em manipulação genética para controlar as mais diversas doenças. São frutos dessa fértil lavoura, entre outros, os primeiros imunizantes para domar a Covid-19 e tratamentos inéditos capazes de levar à remissão enfermidades hereditárias raras e debilitantes. Agora chega a vez dos medicamentos que, por meio de uma instrução direta aos genes, ensinam o organismo a se blindar de problemas extremamente prevalentes — caso do colesterol alto, condição que embute risco de vida e que acomete boa parte da população. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) acaba de aprovar um novíssimo remédio capaz de prevenir o entupimento das artérias — e, por extensão, de ataques cardíacos e acidentes vasculares cerebrais (AVC). Resumindo em poucas palavras, ele “ensina” o corpo a desligar um mecanismo que perpetua taxas elevadas de colesterol no sangue.
Criada pelo laboratório suíço Novartis, a medicação, chamada inclisirana, ataca uma das principais vias biológicas que mantêm o colesterol nas alturas com a aplicação de duas ou três injeções por ano. Para isso, faz uso dos RNAs de interferência, partículas que se intrometem no maquinário celular e alteram as ordens dadas pelo DNA para a fabricação (ou não) de proteínas. Nesse caso, a droga impede a produção de uma peça-chave para a persistência do colesterol alto — e do perigo que ele representa para o coração.
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Todo o arsenal terapêutico para a doença hoje tem a missão de fazer o fígado remover o excesso de gordura em circulação. A diferença do inclisirana é que ele age direto na fonte, ou seja, nos genes. “Trata-se de um medicamento potente, que chega a reduzir os níveis de LDL, o colesterol ruim, em cerca de 50%, em média”, diz o cardiologista Raul Dias dos Santos, do Instituto do Coração (InCor) da Faculdade de Medicina da USP. “Sua ação prolongada é outra grande vantagem em relação aos remédios atuais, que ou são tomados diariamente ou precisam ser injetados a cada quinze ou trinta dias”, acrescenta.
Nesse primeiro momento, o inclisirana recebeu sinal verde da Anvisa apenas para pacientes de alto risco cardíaco, que não conseguem controlar o colesterol com as estratégias tradicionais e já sofreram um infarto ou derrame. A tendência, porém, é que, à medida que sua eficiência se confirme, ele venha a servir a um maior número de pessoas — estima-se que 40% da população esteja com o colesterol desequilibrado (os limites são definidos de acordo com o risco cardiovascular individual). “As pesquisas precisam mostrar quão efetiva é a medicação na redução da ocorrência de infartos e outras complicações em si”, explica Santos. Esse dado permitirá determinar seu nível de proteção, inclusive em comparação com os fármacos disponíveis. Como toda nova tecnologia, o remédio da Novartis deve desembarcar por aqui com preço igualmente nas alturas. O valor está em fase de definição, mas fora do Brasil o tratamento custa o equivalente a 30 000 reais por ano.
A expansão do uso do inclisirana, em decorrência da comprovação de eficiência e maior acessibilidade, pode ajudar a contornar um dos principais desafios no tratamento do colesterol alto — a baixa fidelidade dos pacientes. “Com injeções a cada seis meses, garantimos uma maior adesão, evitando que a pessoa se esqueça ou deixe de tomar a medicação no dia a dia”, aponta a cardiologista Maria Cristina Izar, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Os estudos em andamento testam o inclisirana tanto isolado quanto em combinação com a terapia-padrão, à base de estatinas, uma das classes de comprimidos mais receitadas no planeta.
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As injeções de RNA de interferência inauguram um capítulo novo na guerra ao colesterol elevado, uma questão de saúde pública — junto com hipertensão, diabetes e obesidade, ele serve de detonador para a causa número 1 de mortes no planeta, posto exercido pelas doenças cardiovasculares, responsáveis por cerca de 400 000 óbitos no Brasil anualmente. Entre elas, o colesterol é particularmente desafiador. Suas taxas permanecem elevadas durante anos ou décadas sem dar sintomas — não raro, a primeira manifestação é um ataque cardíaco. De acordo com o Estudo Epidemiológico de Informações da Comunidade, conduzido e recém-divulgado pela Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp), trata-se do fator de risco menos controlado na população brasileira, diagnóstico alcançado a partir da análise de 7 724 indivíduos atendidos em 322 postos de saúde de 32 municípios paulistas. Sete em cada dez apresentavam colesterol alto e menos de 14% mantinham os níveis dentro da meta.
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Cada nova classe de medicamentos apta a conter, de forma segura e prática, um problema que já foi batizado de “assassino silencioso” é sempre bem recebida pela classe médica, e o inclisirana deve ampliar o arsenal nessa batalha. “Hoje a linha de cuidados começa com as estatinas”, diz Maria Cristina. Se elas falharem, pode-se agregar outro comprimido que bloqueia a absorção de colesterol pelo organismo. Casos mais duros na queda têm a opção de serem tratados com injeções mensais ou quinzenais de um anticorpo monoclonal que inibe a produção da proteína-chave no processo de elevação. Outra tática expressamente defendida pelos especialistas e pelas diretrizes — mas que boa parte dos pacientes pena para incorporar na rotina — são as mudanças no estilo de vida. Ajustes na alimentação e a prática de exercícios somam pontos para baixar o colesterol e prevenir contra outras situações que concorrem para infartos e AVCs.
A conscientização é tecla batida em todos os consultórios. Uma pesquisa do Instituto Ipsos com 1 000 brasileiros divulgada no início do ano revelou que 64% desconhecem suas metas de colesterol e seu risco cardíaco. Além disso, metade dos entrevistados acredita que o colesterol pode ser detido sem remédios, o que não é verdade na maioria dos casos. Um dos motivos é fisiológico: 70% são produzidos pelo próprio corpo no fígado e só 30% vêm da dieta. Ou seja, à maioria das pessoas diagnosticadas com o quadro não resta opção senão adicionar medicamentos ao seu cotidiano. A boa notícia é que, ao que tudo indica, não demora para que os brasileiros possam usufruir algumas poucas picadinhas anuais.
Publicado em VEJA de 19 de julho de 2023, edição nº 2850