O mais novo capítulo da saga de desmascaramento da pseudociência e das fraudes em pesquisas foi exposto em uma reportagem publicada no The Wall Street Journal. Ali, a jornalista Nidhi Subbaraman informa que a editora internacional Wiley, com mais de 217 anos de atuação, anunciou o fechamento de 19 periódicos supostamente científicos, alguns devido a fraudes em pesquisas em larga escala. Segundo um porta-voz da editora, nos últimos dois anos, eles retrataram (isto é, declararam inválidos) mais de 11.300 artigos publicados, e fecharam quatro jornais.
Dentre algumas explicações para a proliferação de ciência falsa, destacam-se os “paper mills”, empresas ou indivíduos que, por um preço, colocam o nome de um cientista como autor de um artigo total ou parcialmente falso, geralmente submetido a revistas menos prestigiadas ou que não oferecem uma revisão rigorosa, aumentando a chance de aceitação.
Esses artigos “problemáticos” normalmente aparecem em lotes de centenas ou até milhares em uma editora. Uma prática comum desses fraudadores é submeter o mesmo artigo a várias revistas simultaneamente, para maximizar as chances de aceitação.
No caso da Wiley, que publica mais de 2.000 revistas, o problema surgiu há dois anos, logo após a empresa pagar quase US$ 300 milhões pela Hindawi, uma editora responsável por cerca de 250 periódicos de acesso aberto com revisão por pares. Em 2022, pouco mais de um ano após a aquisição, cientistas notaram que dezenas de estudos das revistas da Hindawi apresentavam problemas, como: listas de referências irrelevantes; a presença do “AI gobbledygook sandwich” (um termo cunhado pela psicóloga Dorothy Bishop para descrever artigos que inserem equações e termos técnicos irrelevantes); além de e-mails de contato quase idênticos.
Pouco tempo depois, a Wiley anunciou que seu portfólio de periódicos da Hindawi havia sido profundamente afetado. Em março de 2023, 19 revistas da Hindawi acabaram removidas do Web of Science, uma base de dados multidisciplinar que reúne artigos de revistas científicas conceituadas.
Entre eles, destaca-se o Evidence-Based Complementary and Alternative Medicine, um periódico internacional com revisão por pares que se propunha (sua publicação foi descontinuada em setembro deste ano) a aplicar o rigor científico à medicina alternativa e complementar, especialmente aos sistemas tradicionais de cura asiáticos, mas que não considerava artigos sobre homeopatia.
Esse posicionamento rigoroso — e necessário — da editora chamou a atenção de diversos profissionais de várias áreas. Caso de Risa Schulman, especialista em suplementos alimentares e alimentos funcionais e presidente da Tap Root, uma empresa de consultoria científica.
Ela publicou um artigo na edição Ingredient Science and Innovation,do Nutrition Business Journal, intitulado ‘Studying the Studies: A Flood of Fraudulent Scientific Papers Put Industry Claims at Risk’, no qual discute as implicações do caso para a indústria dos suplementos alimentares.
De acordo com Schulman, as ramificações dessa nova realidade exigem, no mínimo, maior escrutínio na revisão de artigos publicados em revistas “não tão confiáveis” para fundamentar alegações de benefício associadas a esses produtos com segurança, além da necessidade de reavaliar as análises anteriores. Essa perda de credibilidade científica também pode afetar os vendedores, que serão questionados sobre a veracidade dos estudos utilizados na promoção dos suplementos, e as empresas.
Contudo, Schulman ressalta que essa situação pode ser uma oportunidade para a indústria, em nível global, avançar e reforçar seu compromisso ao reconhecer o problema e afirmar que, por levar a integridade científica a sério, lidará com a questão da melhor maneira possível, em vez de fingir que nada está acontecendo.
Por fim, Schulman sugere que executivos e líderes da indústria iniciem um diálogo em seus círculos internos e mais amplos para gerar as melhores práticas.
A meu ver, esse posicionamento está mais próximo de uma dissonância cognitiva, com traços de pressão econômica sobre o setor — considerando a possibilidade de que seja impactado pela descrença nas alegações de benefício feitas a favor de seus produtos — do que, de fato, uma defesa do método científico no campo da medicina alternativa e, mais especificamente, na área de suplementos e novos ingredientes.
É inegável que a adoção de um maior escrutínio científico e uma postura mais cética em relação a descobertas extraordinárias traria mais confiabilidade para o setor e, ainda mais importante, para os possíveis consumidores. Entretanto, se isso de fato ocorrer na prática, já é outra história.
Considerando que a indústria, pelo menos aqui no Brasil, faz uso de marketing agressivo para promover seus produtos — sem mencionar os subterfúgios para “driblar” a Anvisa — e que, muitas vezes, isso se baseia em alegações de benefícios infundadas ou respaldadas por estudos frágeis, não sei até que ponto essa revelação de fraudes alteraria a estratégia atual.
A promoção de suplementos alimentares no Instagram, por exemplo, está repleta de alegações de benefícios para a saúde que, por pouco, não violam as normas da Anvisa — como no caso de um suplemento de colostro e proteína que promete “auxiliar” a imunidade. Este, porém, só cumpre (de certa forma) a promessa, não por conter a proteína mágica do fabricante, mas uma pitada de zinco – mineral que de fato contribui com o sistema imune, mas que pode ser facilmente obtido pela alimentação.
Fraude integrativa
Nunca imaginei que estaria citando, novamente, Alan Gaby em um dos meus artigos. Para quem não está familiarizado com o nome, ele é o antigo presidente da Associação Médica Holística Americana e autor de diversos livros, incluindo um sobre “soroterapia”, no qual defende sua aplicação para uma ampla gama de condições clínicas, como rinite alérgica, fibromialgia e hipertireoidismo.
Mas, deixando de lado as divergências, em 2022, Gaby publicou um artigo no Integrative Medicine: A Clinician’s Journal — periódico revisado por pares que aborda diversas questões clínicas, como o uso de suplementos nutricionais, botânicas, dieta e estilo de vida, e da qual, curiosamente, ele faz parte do conselho editorial — intitulado “Is There an Epidemic of Research Fraud in Natural Medicine?”, onde ele faz um desabafo sobre a situação da área.
Segundo Gaby, ao longo dos últimos 49 anos, ele analisou e revisou mais de 50.000 artigos da literatura biomédica, sendo a maior parte relacionada ao campo da medicina nutricional. No entanto, nos últimos 10 a 15 anos, ele observou um número desconfortavelmente grande e crescente de artigos publicados que poderiam ter sido fabricados; ou seja, estudos que, apesar de estarem publicados, possivelmente nunca foram realmente conduzidos.
Os estudos que suscitaram preocupações vieram principalmente do Irã e, em menor escala, do Egito, China, Índia, Japão, entre outros. Geralmente, esses estudos incluem um ou mais dos seguintes aspectos:
(1) o estudo é de um pesquisador ou grupo de pesquisa que publicou um número enorme de ensaios clínicos randomizados (RCTs) em um curto intervalo;
(2) o número de participantes é relativamente grande, considerando os recursos disponíveis para os pesquisadores;
(3) o período de recrutamento é incomumente curto;
(4) após a conclusão do estudo, a submissão do artigo a uma revista ocorre de forma extremamente rápida;
(5) mesmo sem evidências preliminares da eficácia de uma determinada intervenção ou terapia, como relatos de caso ou ensaios não controlados, é realizado um ensaio clínico randomizado duplo-cego (uma metodologia cara, que geralmente só é usada quando já há evidências de eficácia);
(6) A magnitude da melhora relatada é muito maior do que a normalmente observada em ensaios que utilizam apenas um ou dois nutrientes;
(7) nenhuma fonte de financiamento é listada, ou o estudo é descrito como autofinanciado, o que gera uma desconfiança adicional, já que estudos com esse design e com grande tamanho amostral são, na maioria das vezes, caros;
(8) o design do estudo levanta questões éticas, como, por exemplo, quando os participantes não têm permissão para usar tratamentos conhecidos por serem eficazes;
(9) uma ou mais características do grupo parecem implausíveis;
(10) a pesquisa foi conduzida por um estudante como parte de uma tese de pós-graduação, e a magnitude do projeto aparenta estar além de suas capacidades e recursos.
Destaca-se que esta última característica foi baseada no artigo do jornalista Richard Stone, publicado na Science em 2016, e intitulado “In Iran, a shady market for papers flourishes”. Neste, Stone denunciou o mercado de artigos e teses produzidos de forma fraudulenta no Irã.
Voltando ao trabalho de Gaby, após expor as características mais comuns dos artigos fraudulentos, ele examinou algumas pesquisas iranianas que levantaram suspeitas. Uma delas tratou da utilização de N-acetil L-cisteína (NAC) para pacientes com colite ulcerativa, que, entre as bandeiras vermelhas que suscitam dúvidas sobre sua credibilidade e a validade dos resultados, destacam-se: o tamanho de amostra irrealista, um cronograma de publicação extremamente curto e pouco crível, a utilização de protocolos de tratamento inconsistentes e definições questionáveis de remissão clínica. E este é apenas um exemplo de um trabalho de detetive muito mais extenso, envolvendo um grande número de pesquisas problemáticas.
Gaby compartilhou suas preocupações com muitos editores de diferentes periódicos. Alguns não responderam, outros aceitaram respostas frágeis ou incorretas dos autores e encerraram a questão, enquanto outros iniciaram investigações sérias, embora o processo – quando ocorria – fosse extremamente lento.
Ele afirma que os editores devem exigir revisões por pares mais rigorosas, pois é perturbador que os revisores não tenham identificado os sinais de alerta. Editores também precisam superar sua relutância em investigar pesquisas que suscitam preocupações entre seus leitores.
Naturalmente, esse comentário provocativo – e correto – de Gaby gerou debate na área. Joseph Pizzorno, editor-chefe do Integrative Medicine, publicou um editorial sobre o tema, convidando líderes da medicina integrativa, funcional, ambiental e natural para comentar.
Jacob Schor, naturopata que atua como revisor de artigos da área e membro do conselho editorial de International Journal of Naturopathic Medicine, após tomar contato com o trabalho de Gaby, escreveu uma extensa reflexão sobre o assunto. O principal está logo no começo – em tradução livre:
“Será que indivíduos que seguem ou se interessam por esse tópico das substâncias naturais são mais ingênuos ou crédulos do que os praticantes de medicina convencional? Esses são tópicos em que é mais fácil se safar com descuido ou mentiras descaradas? Ou seja, somos nós e nossos colegas mais fáceis de enganar ou mais ingênuos? Para muitos de nós, a crença na eficácia das substâncias naturais como tratamento para doenças é uma questão de fé, assim como de experiência, o que torna mais fácil aceitar resultados que reforcem nossa crença inicial”. E continua: “A segunda pergunta seria se padrões semelhantes de qualidade estão aparecendo nesses países em artigos sobre outros tópicos, não relacionados às terapias naturais? Ou somos o público-alvo preferencial?”.
Acredito que o comentário de Schor seja uma síntese perfeita do motivo pelo qual o posicionamento de Gaby e de outros pesquisadores dessa seara pseudocientífica me soa inconsistente. Embora defendam o método científico e exijam um maior rigor tanto dos periódicos quanto dos pesquisadores, no final das contas, grande parte das “evidências” que eles defendem se baseia em fé e estudos duvidosos.
Para exemplificar o que quero dizer, Alan Gaby tem, como maior contribuição em seu campo, o livro “Nutritional Medicine”, que afirma ser baseado em evidências científicas. Gaby discute centenas de terapias nutricionais que, segundo ele, poderiam ser usadas como alternativas ou complementos eficazes, de baixo custo e risco, à medicina convencional.
Para citar uma das alegações mais bizarras, em um capítulo específico sobre a Vitamina C, Gaby afirma que, desde que utilizada na dosagem adequada, a vitamina poderia ser útil para prevenir ou tratar uma ampla gama de condições, desde problemas cardiovasculares (como aterosclerose) até vício em opioides e distúrbios psiquiátricos, como depressão e esquizofrenia. Nada disso tem base científica, e a “evidência” oferecida no livro é a palavra do nobelista Linus Pauling, que acreditava que altas doses de vitamina C poderiam trazer benefícios para a saúde, posição desmentida pela evidência clínica.
Chega a ser difícil acreditar que este é o mesmo autor que fez críticas tão contundentes em relação aos artigos fraudulentos na área da medicina natural e pediu maior rigor de editores e revisores.
* Mauro Proença é nutricionista e colaborador da Revista Questão de Ciência, onde este artigo foi originalmente publicado