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Por que o público transgênero ainda sofre tanto com a saúde?

As disparidades no atendimento médico como a exclusão e a falta de acolhimento podem ser convertidas em reais fatores de risco

Por Diego Alejandro
Atualizado em 10 fev 2023, 13h50 - Publicado em 9 fev 2023, 16h08
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  • Um estudo da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, divulgado nesta quarta-feira 7, indica que as disparidades no atendimento médico para o público transgênero podem ser convertidas em fator de risco de saúde. Elaborado a partir de uma pesquisa conduzida anualmente pelo sistema nacional de saúde do Reino Unido (NHS), com mais de 850 mil entrevistados, os dados compilados apontam que essa população tende a confiar menos no atendimento médico e se sentir menos acolhida pelos profissionais. Há uma diferença de 7% na percepção de pacientes trans quanto ao atendimento de suas necessidades: 88% se dizem satisfeitos, contra 95% do público geral. No caso de pacientes com problemas de saúde mental, a diferença aumenta: 77% contra 87%.

    No Brasil, uma outra pesquisa aponta um cenário semelhante. De acordo com um estudo encomendado pela farmacêutica Sanofi, grupos minoritários, que incluem a comunidade LGBTQIA+, expressam baixos índices de confiança na prestação de serviços de saúde. Isso é motivado, sobretudo, por experiências negativas no passado. 87% da população com deficiência, por exemplo, é capaz de relatar ao menos uma experiência negativa com o atendimento médico, enquanto a comunidade LGBTQIA+ representa 86%.

    No que tange a satisfação diante dos serviços prestados, a diferença entre membros da comunidade (77%) e público geral (86%) é de 9%. A lacuna é ainda maior se o paciente pertencer a dois ou mais grupos marginalizados. No caso brasileiro, minorias étnicas figuram nas categorias que se sentem desprezadas pela prestação de serviços de saúde. ‘Não se sentir ouvido’ (37%), ‘ser julgado’ (20%) e ‘estar inseguro’ (19%) são algumas das queixas mais comuns.

    Os empecilhos no relacionamento pessoal entre paciente e profissional também têm efeitos práticos preocupantes. Um estudo retrospectivo da University Medical Center, em Amsterdã, concluiu que o risco de desenvolver câncer de mama foi 46 vezes maior do que em homens cis gênero, mas menor do que em mulheres cisgênero. “Um dos pontos chave na jornada de cuidados dos pacientes transgênero é a realização de terapias hormonais sob supervisão de uma equipe multiprofissional, tendo como objetivos principais evitar doses excessivas de hormônios, estímulo a redução dos riscos modificáveis associados às terapias hormonais e a melhorias nos hábitos de vida”, explica Luciana Landeiro, oncologista e organizadora de um dos primeiros painéis especializados que no 10º Simpósio Internacional Oncoclínicas, realizado em setembro, debateu como se deve tratar pacientes transgêneros com câncer no país.

    O congresso organizado pela médica também discutiu como o acesso desse público aos tratamentos é um dos principais fatores de risco para o grupo. “Falta compreensão e acolhimento por parte da equipe médica em relação à identidade de gênero do paciente”, explica Luciana. “Há também, muitas vezes, questões relacionadas ao próprio indivíduo, traumas psicossociais decorrentes de situações diversas, como falta de acolhimento nas unidades de saúde, ou a necessidade de realizar procedimentos relacionados ao sexo atribuído ao nascimento, que contradizem sua identidade de gênero”.

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    E as complicações são sentidas também na infraestrutura do equipamento social de saúde. Clarissa Mathias, oncologista do grupo Oncoclínicas, organizadora do painel e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC), relata que muitos de seus pacientes homens trans não conseguem, por exemplo, acessar um ginecologista para fazer um exame preventivo, seja nos hospitais e clínicas públicos ou privados, já que o sistema não se adaptou de forma efetiva para as novas necessidades do paciente.

    Clarissa também atenta que a maior incidência de algumas doenças, como HIV e hepatite A, além de alguns índices importantes como a baixa vacinação contra o HPV, são outros fatores que mostram como a desigualdade de acesso ao sistema de saúde brasileiro pune com mais rigidez essa parcela da população, tornando-a ainda mais vulnerável, inclusive, ao câncer. Para a oncologista, um jeito de incluir os transgêneros é justamente reconhecer sua existência: “A população trans precisa estar nas campanhas de Outubro Rosa, por exemplo, para que se sintam parte disso. Percebam que sim, tem alguém igual a mim que teve câncer de mama, então pode acontecer comigo também”.

    Para isso, Mathias propõe um “outubro arco-íris”, para lembrar que existe uma outra população de mais de 3 milhões de indivíduos desassistidos, identificados como transgêneros ou não binários na população adulta brasileira, segundo a Faculdade de Ciências Médicas e Biológicas de Botucatu. “Precisa atualizar a campanha. A cobertura nacional de mamografia é de 17%, quando a Organização Mundial de Saúde preconiza 70% de cobertura de mamografia. Sabemos que, em boa parte, são as minorias que estão ficando de fora”.

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    Atualmente, o Brasil conta com poucos centros especializados em atendimento geral para pacientes trans. Elaine Frade é médica e coordena um dos poucos equipamentos criados para este fim, no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo “O número é insuficiente. A verba que se disponibiliza para esses centros cadastrados é muito pequena e faltam profissionais habilitados”, diz. Para Eliane, o motivo da escassez de centros especializados é a exigência de tratamentos específicos à população trans vindas do Ministério da Saúde que, mesmo legítimas, restringem os profissionais capacitados para o atendimento.

    Em janeiro, a cidade de São Paulo recebeu mais uma unidade de saúde especializada na população trans. O Centro de Referência de Saúde Integral para a População de Travestis e Transexuais Janaína Lima – nome dado em homenagem à ativista travesti morta em 2021 – tem capacidade para realizar mais de 1.200 consultas médicas por mês.

    Os procedimentos, como a quantidade de dose segura de hormônios sexuais ou quais médicos especialistas devem participar do processo de transição, estão bem estabelecidos na resolução do Conselho Federal de Medicina, publicada em 2019, e na portaria do Ministério da Saúde, em 2018, nas quais Frade participou ativamente – “O que não está sendo aplicado adequadamente é o que foge dessas normatizações, ou seja, tudo aquilo que não é sabido ou um consenso na medicina para transexuais”, afirma a médica. Segundo a especialista, a oncologia cai nesse aspecto porque quase não há pesquisas relevantes na área. “Não é somente um problema nosso, mas do mundo. Ninguém tem experiência a longo prazo e com grande número de pessoas para descrever uma diretriz e encaminhamentos específicos para a oncologia em pessoas trans”.

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    Vale lembrar, contudo, que para a utilização de tratamentos oncológicos não há condicionantes e são totalmente focados na doença e não no gênero da pessoa. “Todos os procedimentos constantes no rol da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) que incluem cirurgias, terapias, tecnologias e medicamentos devem ser obrigatoriamente cobertos pelos planos de saúde, seja o paciente um homem ou uma mulher cisgênero ou transgênero, com base no princípio constitucional da igualdade” explica a advogada, Luciana Toledo Távora Niess de Souza. “A dignidade da pessoa humana também é um direito fundamental que se encontra disposto em nossa Lei Maior”, completa.

    Nos Estados Unidos, a cobertura do plano de saúde relacionada ao seu status legal de identidade de gênero não é completamente definida. O Affordable Care Act (ACA), comumente conhecido como Obamacare, melhorou o acesso ao seguro para a comunidade LGBT por meio de medidas antidiscriminatórias, como não permitir que as seguradoras rejeitem consumidores por serem transgêneros. No entanto, o seguro vendido fora do mercado ACA não precisa seguir esses requisitos. Isso significa que cuidados preventivos, como exames ginecológicos para homens transgêneros, podem não ser cobertos. O mundo ainda tem muito o que evoluir.

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