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Prevenir é melhor que remediar? Nem sempre

Mercado de saúde surfa na onda de um excesso de exames e procedimentos que nem sempre trarão benefícios à saúde dos pacientes, reflete professor

Por André Bacchi/ Revista Questão de Ciência*
1 out 2024, 13h58

“Prevenir é melhor do que remediar.” O ditado, presente em diversas culturas, reflete uma sabedoria popular que valoriza a antecipação dos problemas, para evitar a necessidade de lidar com suas consequências. Na área da saúde, essa máxima tem guiado políticas públicas, orientado práticas clínicas e moldado a percepção da sociedade sobre bem-estar e qualidade de vida. A ideia é simples: se podemos evitar que uma doença ocorra, isso é preferível a tratá-la após o surgimento. Além de potencialmente salvar vidas, a prevenção tende a ser mais econômica e menos invasiva do que tratamentos curativos.

No entanto, a aplicação prática do conceito não é tão linear. A saúde humana é um campo complexo, influenciado por fatores biológicos, psicológicos, sociais e ambientais. Intervenções que visam prevenir doenças podem, paradoxalmente, causar danos se não forem bem fundamentadas. É aqui que a distinção entre os diferentes níveis de prevenção se torna crucial, assim como o reconhecimento dos riscos associados ao excesso de intervenções em saúde.

Níveis de prevenção

Embora coloquialmente associemos “prevenção” a tudo aquilo que podemos fazer para evitar uma doença, em epidemiologia este conceito é bem mais amplo. Por exemplo, tomar um medicamento pode ser uma forma de prevenir que uma doença se agrave. Da mesma forma, a reabilitação busca prevenir a piora da qualidade de vida após um dano grave. Ou seja, a ideia de prevenir continua essencialmente mesma, o que muda é o nível em que as ações preventivas ocorrem: primário, secundário e terciário.

Prevenção Primária: Este é o primeiro nível, e tem como objetivo impedir que a doença ocorra. É provavelmente o que as pessoas imaginam quando ouvem o ditado que abre este texto. Envolve intervenções realizadas antes do aparecimento de qualquer sinal ou sintoma, atuando sobre os fatores de risco. Exemplos clássicos incluem a vacinação, que protege contra doenças infecciosas, e campanhas de promoção de hábitos de vida saudáveis, como alimentação balanceada, e prática regular de exercícios físicos. A prevenção primária é fundamental para reduzir a incidência (novos casos) de doenças na população.

Prevenção Secundária: Focada na detecção precoce de doenças, a prevenção secundária visa identificar alterações em estágios iniciais, quando as chances de cura ou controle são maiores. Isso é feito por meio de exames de rastreamento e diagnóstico precoce, como colonoscopias para câncer de cólon ou testes de glicemia para diabetes. Ao diagnosticar uma doença em sua fase inicial, é possível iniciar o tratamento mais cedo, evitando complicações e melhorando o prognóstico.

Prevenção Terciária: Este nível ocorre quando a doença já está estabelecida, e busca minimizar suas consequências e melhorar a qualidade de vida dos pacientes. Envolve medidas de reabilitação física e psicológica, acompanhamento de doenças crônicas e controle de sintomas. Por exemplo, programas de reabilitação cardíaca após um infarto, fisioterapia para pacientes com sequelas neurológicas e apoio psicossocial para pessoas vivendo com HIV/AIDS. A prevenção terciária é essencial para reduzir a morbidade associada a doenças e promover a reintegração social dos indivíduos afetados.

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Prevenção Quaternária?

Apesar dos benefícios das medidas preventivas, é crucial reconhecer que intervenções em saúde não são livres de riscos. A palavra iatrogenia refere-se a efeitos adversos não intencionais, causados por ações ou omissões dos profissionais de saúde. Isso inclui desde reações adversas a medicamentos e complicações cirúrgicas até diagnósticos incorretos e tratamentos desnecessários.

Por exemplo, a realização de exames de imagem complexos, sem indicação precisa, pode levar à descoberta de achados incidentais que, embora benignos, podem gerar ansiedade no paciente, levar a mais exames e até a intervenções invasivas desnecessárias, como uma biópsia. Além disso, o uso indiscriminado de antibióticos para prevenir ou tratar infecções, muitas das quais são de origem viral, contribui para o fenômeno de resistência bacteriana, um problema global de saúde pública.

A pressão por agir, frequentemente motivada pelo desejo de ajudar ou pela expectativa dos pacientes, pode levar profissionais de saúde a realizar intervenções que não trazem benefício e que podem causar danos. Esse fenômeno pode ser parcialmente explicado pelo viés de comissão, uma tendência cognitiva em que a ação é preferida à inação, mesmo quando esta última seria a opção mais segura.

Profissionais de saúde são frequentemente treinados para agir. Afinal, não é isso que esperamos deles? Mas será que intervir sempre é a melhor opção? Pacientes, por sua vez, podem interpretar a ausência de ação como desinteresse ou incompetência do profissional. Essa dinâmica alimenta uma cultura onde exames, procedimentos e prescrições são realizados não necessariamente porque são a melhor opção, mas porque representam uma ação tangível. Essa preferência pela ação pode levar ao overdiagnosis (sobrediagnóstico) e ao overtreatment (sobretratamento), fenômenos em que condições sem relevância clínica significativa são diagnosticadas e tratadas, expondo pacientes a riscos desnecessários.

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Por exemplo: a detecção de nódulos tireoidianos pequenos e indolentes pode levar a cirurgias invasivas, com riscos associados, sem que haja benefício comprovado para o paciente. A prescrição de medicamentos para controlar níveis de colesterol levemente elevados em indivíduos sem outros fatores de risco cardiovascular pode não ser necessária e causar efeitos colaterais.

Em resposta a esses desafios, surgiu o conceito de prevenção quaternária, que propõe uma reflexão crítica sobre as intervenções médicas. Seu objetivo é identificar indivíduos em risco de sobretratamento, protegendo-os de intervenções médicas desnecessárias ou nocivas. Este nível de prevenção reconhece que, em alguns casos, a melhor ação é não intervir.

Isso não significa negligência ou abandono mas, sim, uma decisão informada e fundamentada na melhor evidência científica disponível. A prevenção quaternária nos lembra do princípio hipocrático primum non nocere (“primeiro, não causar dano”) – ou, como provavelmente diriam nossas mães: “muito ajuda quem não atrapalha” – e nos convida a considerar cuidadosamente os riscos e benefícios de cada intervenção.

A indústria do excesso

O mercado de saúde tem surfado nessa onda de excesso de intervenções. Quem nunca recebeu uma oferta de check-up completo, mesmo sem precisar? E aquelas vitaminas caras que nos empurram na farmácia, sem nem saber se estamos com deficiência? Sem falar nas terapias “milagrosas” – que variam de “soro da beleza” a “enema de café” – que aparecem a todo momento na internet. Esses são exemplos de como a prevenção pode ser distorcida em prol de interesses comerciais. Essa abordagem não apenas sobrecarrega os sistemas de saúde e os orçamentos pessoais, mas também contribui para a ansiedade e a percepção de que estamos constantemente doentes ou em risco. Paradoxalmente, são muitas dessas intervenções que colocam em risco pacientes que antes estavam bem.

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Além disso, enquanto ocorre o excesso de intervenções desnecessárias, há também uma crescente desconfiança em relação a medidas preventivas comprovadamente eficazes, como as vacinas. Movimentos antivacinação se alimentam de desinformação e medo, levando à recusa de imunizações que são essenciais para a saúde pública. Essa desconfiança é amplificada quando a população observa contradições no sistema de saúde, como a promoção de tratamentos sem evidência sólida, ao mesmo tempo em que se exige adesão a políticas preventivas. A falta de comunicação clara e transparente sobre os riscos e benefícios das intervenções alimenta o negacionismo e a hesitação.

Para reverter esse cenário, é fundamental que profissionais de saúde adotem uma postura crítica e ética em sua prática. Isso envolve:

  1. Basear as decisões clínicas na melhor evidência científica disponível, evitando a influência de interesses comerciais ou modismos.
  2. Comunicar de forma clara e empática com os pacientes, explicando os riscos e benefícios de cada intervenção e respeitando sua autonomia.
  3. Reconhecer e combater o viés de comissão, estando disposto a considerar que, em alguns casos, a melhor opção é não intervir.
  4. Promover educação em saúde, educando os pacientes sobre a importância também da prevenção quaternária e os riscos do sobrediagnóstico e do sobretratamento.

Além disso, é essencial que as instituições de saúde e os sistemas regulatórios estabeleçam diretrizes claras e restrinjam práticas que promovem intervenções desnecessárias. Políticas de saúde devem priorizar a qualidade sobre a quantidade, incentivando a prática baseada em evidências, focada no bem-estar do paciente.

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Equilíbrio e responsabilidade

A prevenção quaternária nos desafia a repensar nossa abordagem à saúde, buscando um equilíbrio entre ação e inação, intervenção e observação. Em um mundo onde a tecnologia médica avança tão rápido quanto as picaretagens e a desinformação em saúde, e no qual as opções de intervenção se multiplicam aos olhos de potenciais pacientes, é tentador acreditar que sempre há algo a ser feito (até mesmo quando estamos bem).

Porém, em muitos casos, menos é mais. A verdadeira sabedoria está em saber quando agir e quando é melhor esperar. Só assim poderemos garantir que o ditado “prevenir é melhor do que remediar” realmente faça sentido e beneficie a todos, sem cair nos perigos do excesso.

* André Bacchi é professor de farmacologia da Universidade Federal de Rondonópolis (MT), divulgador científico e autor do livro Afinal, o que é Ciência?… E o que não é (Editora Contexto). Este texto foi publicado originalmente na Revista Questão de Ciência

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