Quem são e como atuam os brasileiros em movimentos contra as vacinas
Fenômeno dá fôlego à volta de doenças que ameaçam a saúde de todos
No livro A Marcha da Insensatez, a historiadora americana Barbara Wertheim Tuchman (1912-1989) mostrou de que maneira decisões equivocadas tomadas por governantes e sociedades — ou parte delas — resultaram em situações abomináveis. A obra se tornou uma referência a nos lembrar o que acontece quando a razão perde o lugar para a ignorância e hordas de provocadores parecem dominar a toada do cotidiano.
Infelizmente, o mundo, hoje, está imerso numa dessas ondas negacionistas, formada por indivíduos que, no campo da saúde, pretendem obstruir o avanço das vacinas. Nunca é demais repetir que os imunizantes têm papel essencial na crescente expectativa de vida ao longo de décadas e são uma das mais relevantes criações da ciência atrelada à medicina. E, para que não reste dúvida: deve-se às vacinas contra o coronavírus a maior parte dos louros pela vitória sobre o vírus que agora se aproxima, como enfim anunciou, na quarta-feira 14, Tedros Adhanom, diretor da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Contudo, como nota triste e inaceitável, na contramão do bom senso, o movimento dos antivacinas cresce em todo o mundo, inclusive no Brasil. Espalhados principalmente no ambiente digital, agem à sombra, de modo covarde. Iluminá-los, de modo a serem vistos, é postura civilizatória. Pesquisadores do Instituto Capixaba de Ensino, Pesquisa e Inovação em Saúde mergulharam nas redes sociais para estudar quem são e o que pregam os antivacinas brasileiros. Foram identificados 394 canais com conteúdo falso sobre imunizantes funcionando no Telegram, de longe o recurso mais usado. Em apenas 24 horas, 1 milhão de pessoas foram impactadas por mais de 14 000 mensagens compartilhadas. O teor dos comentários é um arsenal de tolices sem pé nem cabeça. Além de promoverem a multiplicação de erros grosseiros de todos os matizes — da ortografia à biologia —, os integrantes deturpam o que podem para convencer os incautos. “Há notícias tiradas de contexto ou apresentadas de forma distorcida”, diz a coordenadora da pesquisa, Adriana Ilha. “É a má informação que causa caos social.” Durante uma semana, VEJA acompanhou a movimentação de alguns desses grupos no Telegram. Imagens de pessoas com mãos deformadas, órgãos ensanguentados e denúncias infundadas de sequelas atribuídas aos imunizantes surgem em meio a campanhas políticas e à oferta de falsos comprovantes de vacinação.
Com menos atividade nas plataformas eletrônicas, mas detentora de um site próprio, a Associação Médicos pela Vida também aparece no levantamento. Ela ganhou notoriedade depois de publicar um manifesto apoiando o ineficaz “kit Covid”, o suprassumo do tratamento precoce defendido pelo presidente Jair Bolsonaro. Um dos líderes do grupo é o cirurgião Eduardo Leite, de Feira de Santana, na Bahia. A briga, ele diz, é para contestar o uso da vacina contra a Covid-19, especificamente. “Não faz sentido vacinar uma pessoa que já teve a doença”, diz. Se tivesse de fazer uma prova de infectologia, o médico tiraria zero. O fato de um indivíduo ter manifestado a doença não lhe garante imunidade. Há outros fatores envolvidos na resposta do sistema de defesa à invasão do corpo por um agente infeccioso. Portanto, ela tanto pode ser robusta quanto nula, e é por esse motivo que tomar a vacina, mesmo depois da doença, é fundamental.
Recentemente, representantes da associação estiveram no Conselho Federal de Medicina. Causa espanto que a entidade, cuja atribuição é regular a atividade médica segundo a luz da ciência, tenha recebido o grupo. Em nota, o CFM limitou-se a dizer que orienta os profissionais a reforçar a importância da vacinação junto à população. Por que perder tempo com quem prega politicamente e é contra os imunizantes?
O minucioso levantamento aponta ainda a médica Maria Emilia Gadelha Serra, candidata a deputada federal por São Paulo pelo PRTB, como um dos expoentes do retrocesso. Defensora da ozonioterapia, técnica que não tem autorização de uso para o tratamento de nenhuma doença no Brasil, ela afirma que “as vacinas contra a Covid-19 são experimentais”, o que não é verdade. Seu nome está ligado a um episódio ocorrido no Acre, em 2015, quando adolescentes vacinadas contra o vírus HPV, o principal causador de câncer de colo do útero, apresentaram quadros de desmaios e convulsões. Quatro anos depois, pesquisadores da Universidade de São Paulo comprovaram que as reações tinham fundo psíquico. Naquele momento, porém, a médica já era uma referência por lá e estruturava-se, em Rio Branco, a Associação Brasileira de Vítimas de Vacinas e Medicamentos. A entidade não atendeu a reportagem de VEJA. O psiquiatra José Gallucci-Neto, que atuou no estudo com as meninas, acompanha a expansão do movimento com preocupação. “Como o governo é abertamente antivacina e leva essas pessoas para dialogar no ministério, deu-se voz a pessoas que nunca trabalharam com imunizantes.”
Ataques às vacinas insuflados pela ignorância são tão antigos quanto elas próprias. No Brasil, parte da população carioca se insurgiu contra a vacinação contra a varíola em 1904 no evento conhecido como Revolta da Vacina. Justo a varíola, responsável por milhões de mortes durante milênios. Mas o conhecimento venceu. Em 1980, a doença foi erradicada. Agora, graças ao crescimento de grupos que se proliferam como fungos na escuridão, o país vê ano a ano despencar as taxas de cobertura vacinal (veja o quadro). E doenças superadas voltam a fazer vítimas ou batem à porta. Eliminado em 2016, o sarampo ressurgiu. A poliomielite, sem caso no país desde 1994, ameaça retornar. Na semana passada, Nova York, nos Estados Unidos, declarou estado de emergência depois que o vírus da doença foi encontrado no esgoto. Em Londres foi assim também. O momento, portanto, é decisivo, e não pode haver espaço para marchas estúpidas.
Disseminação virtual
A maioria dos antivacinas interage em grupos de conversa do Telegram. Abaixo, alguns dos diálogos trocados com a reportagem
Violência liberada
Na lista do que pode ser apresentado, estão “conteúdos violentos gráficos” sobre protestos contra vacinas, lockdowns e passaportes de imunização
Quer pagar como?
Neste grupo, compra-se passaporte de vacinação escolhendo o fabricante e as datas nas quais a pessoa teria sido imunizada. Aceitam Pix ou cartão
Plano de contingência
Os responsáveis dizem que “os agentes globalistas” tentam acabar com a liberdade de expressão e dão opções de canais caso não tenham o Telegram
Colaborou Diego Alejandro
Publicado em VEJA de 21 de setembro de 2022, edição nº 2807