Não é frase de efeito dizer que vivo uma corrida contra o tempo. Desde março do ano passado, quando consegui entrar na fila de órgãos do Instituto do Coração (InCor), em São Paulo, vivo à espera do transplante de dois pulmões que me liberte do cansaço que me aprisiona do momento em que acordo à hora em que durmo. É um cansaço permanente, que transformou atividades simples, como um banho, em verdadeiros suplícios. Secar os cabelos com secador, andar até a esquina e pegar um ônibus requer esforço demais para o atual estágio da minha doença: a fibrose cística (FC).
Fui diagnosticada aos 3 meses de idade, depois de uma pneumonia. A FC ataca as células produtoras de secreções e faz com que o muco pulmonar, por exemplo, fique mais espesso e difícil de ser expelido. As secreções se grudam no órgão, provocando infecções que destroem o tecido pulmonar e causam falta de ar.
Tive uma vida normal até os 17 anos. Desde pequena, eu me acostumei a fazer inalações diárias e a tomar remédios — as “bolinhas”, como os chamava, que fazem as vezes de enzimas digestivas, que meu pâncreas não produz direito por causa da FC. Nada que me impedisse de brincar, estudar, praticar esportes e namorar. Enfim, viver a vida. Sou mineira, de Barbacena, e mudei-me para Juiz de Fora para cursar odontologia. Era 2014, eu tinha 17 anos e minha rotina era estudar, sair com as amigas e ir para a balada. Em setembro daquele ano, senti um cansaço anormal, que me impedia de respirar. Fui levada para o hospital e, depois de poucas perguntas, a médica colocou um cano de oxigênio no meu nariz e indagou se eu me sentia melhor. “Sim! Muito melhor!”, respondi. Em seguida, ela disse que eu teria de ficar internada. Eu estava com uma infecção no pulmão, um sinal claro de agravamento da FC. Senti muita raiva da situação e, confesso, da médica. Achei a internação um exagero. Depois de catorze dias no hospital, voltei para casa, retomei as aulas, e a vida seguiu. Aos 18, passei a ter muita dor de cabeça, e os médicos descobriram que a minha oxigenação caía muito enquanto eu dormia. Comecei a dormir com oxigênio e, alguns meses depois, a usar oxigênio também durante o dia. Tranquei meu curso e voltei para Barbacena, o que me deprimiu. Na internação seguinte, em 2016, soube que só teria alta se conseguisse um aparelho que me ajudasse a respirar o tempo todo (um concentrador de oxigênio). Nas últimas internações, a falta de ar chegou a tal nível que achei que eu realmente morreria. Meu caso se agravou, e eu soube que a única forma de viver seria por meio do transplante. Eu não tinha noção da complexidade da cirurgia nem da dificuldade de conseguir um doador compatível. É preciso ter não só o mesmo tipo sanguíneo, mas a altura, o peso e o tamanho da caixa torácica. Muitos doentes morrem na fila antes de conseguir o órgão.
Demorei a entender a doença. Não entendia por que tomar remédio e fazer inalações, se não me sentia doente. Depois que caiu a ficha, demorei a aceitar. Senti raiva da situação e das limitações que a FC me causava. Mas minha vontade de viver é tanta que tenho certeza de que o telefone vai tocar e alguém me mandará ir correndo para o InCor para receber os novos pulmões. Essa perspectiva me animou a fazer coisas que eu não achava que fosse capaz. Levantei 65 000 reais em uma vaquinha para pagar os primeiros seis meses da estada em São Paulo (uma das exigências para entrar na fila é morar perto do hospital). Criei uma conta no Instagram (@minadefibra), na qual abordo minha rotina, a doença e a importância de ser doador. Também criei uma camiseta para divulgar a informação de que um doador pode salvar até oito vidas. Confeccionamos trinta no início, mas já vendemos mais de 500. Levo a camiseta a shows e peças, para que artistas gravem vídeos com ela. Basta uma tomada para eu ligar meu concentrador de oxigênio e uma cadeira para eu me sentar. Eu me canso por tudo. Mas não me canso de viver.
Depoimento dado a Roberta Paduan
Publicado em VEJA de 9 de janeiro de 2019, edição nº 2616