No início da pandemia de Covid-19, há quase dois anos, as regras sanitárias foram fundamentais para proteger vidas enquanto a vacina contra as temíveis infecções não vinha. Efeito colateral do distanciamento social, os relacionamentos amorosos e os contatos mais íntimos entre pessoas desconhecidas ficaram em suspenso, gerando uma expectativa que, em alguns casos, se converteu em uma nova forma de ansiedade, especialmente entre os jovens sem nenhuma experiência nesse campo. A criação de vacinas e o progresso da imunização no Brasil — 330 milhões de doses aplicadas e cerca de 140 milhões de pessoas com o ciclo de vacinação completo — e em outros países despertaram uma esperança para quem quer sentir o calor de outra pessoa na pele e, porque não, um pouco de prazer nestes tempos tão difíceis. Os aplicativos de relacionamento identificaram essa movimentação entre os usuários, que, além de celebrarem suas melhores qualidades, agora podem informar também como está sua imunização — o que facilita na hora de escolher entre o coraçãozinho ou o xis e, se for o caso, marcar o sonhado encontro.
Pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) descobriram que a maioria dos jovens entre 18 e 25 anos recorreu a esse tipo de tecnologia para diminuir a carência e solucionar a falta de contato humano decorrente do isolamento. O Inner Circle, um aplicativo de relacionamentos, realizou uma pesquisa com aproximadamente 2 000 pessoas de seu catálogo exclusivo. O levantamento identificou que 80% dos pesquisados afirmam estar prontos para sair com alguém. Mas para 60% deles a vacina é um pré-requisito inegociável para que o encontro presencial se consume. Três em cada quatro participantes disseram que pretendem flertar mais neste ano em comparação com o verão passado, e quase metade deles só se sentiu à vontade para criar um perfil na plataforma depois do início do Plano Nacional de Vacinação. Além disso, segundo outra pesquisa, esta de setembro, mais de 45% das pessoas não sairiam com alguém que se recusa a tomar a vacina.
Diante das evidências, os aplicativos se adaptaram. Além do Inner Circle, o pioneiro Tinder e o popular Bumble já permitem aos usuários informar se tomaram uma ou duas doses da vacina, o que pode ser determinante para a realização do tão ansiado match. No futuro próximo, a ideia de combinar encontros com desconhecidos sem antes questionar seu status de vacinação pode parecer tão estranha quanto ir a um hospital sem máscara — algo que, antes de 2020, era muito comum. Ainda que a reabertura esteja acontecendo, com mais pessoas se sentindo seguras para sair de casa, o receio de contrair o vírus por meio de novas variantes, como a delta e a mais recente, ômicron, continua sendo uma constante na vida dos solteiros. “Por mais que novos hábitos tenham sido incorporados, como o uso de apps de relacionamento por quem não estava acostumado ou até os encontros virtuais como primeiro passo, ninguém quer correr o risco de voltar a ficar isolado em casa se contrair a doença”, diz Ximena Buteler, gerente de marketing do Inner Circle no Brasil.
Não se trata apenas de desejo, mas de saúde pública. Nos Estados Unidos, onde o movimento antivacina é intenso e a imunização entre os jovens não tem grande penetração, o governo anunciou em maio que fecharia uma parceria com aplicativos de relacionamento para uma campanha de conscientização a favor da vacinação contra a Covid-19. No Brasil, apesar dos progressos na imunização, o cenário é preocupante, já que o governo demora a tomar decisões para proteger a população e insiste em ignorar ou menosprezar o que a ciência e os especialistas recomendam. O caso mais recente, envolvendo o passaporte vacinal para viajantes estrangeiros, teve a intervenção do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, que determinou a exigência do documento para a entrada no país. Na contramão da ignorância, as pessoas em busca de parceiros criaram, de forma quase espontânea, as próprias regras e um passaporte de prazer. Para deitar e rolar sem medo.
Publicado em VEJA de 22 de dezembro de 2021, edição nº 2769