Sua história já nasceu em meio a controvérsias. Descoberta no início do século XX como a peça-chave que faltava no organismo de crianças com raquitismo, ela foi erroneamente classificada como uma vitamina. Duas décadas depois, cientistas entenderam que se tratava de um tipo de hormônio, mas a alcunha já tinha pegado. Era a vitamina D, uma molécula que, quase seis décadas depois que começou a ser sintetizada em laboratório, ganhou ares de panaceia. Com a humanidade cada vez mais enfurnada em ambientes fechados, a substância produzida naturalmente pelo organismo com a exposição solar teria atingido níveis deficitários em massa. E a solução, fácil, seria na forma de suplementos. Alguns médicos e pacientes passaram a enxergar nas cápsulas e gotinhas uma fórmula para prevenir e até sanar um extenso rol de doenças — de câncer a distúrbios autoimunes, passando por infecções. Na pandemia de covid-19, o produto foi alçado a escudo contra o vírus — sem evidências robustas favoráveis — e as vendas estouraram de vez.
Sim, muita gente se beneficia da suplementação, mas repor vitamina D não é algo indicado a todo mundo nem isento de riscos quando feito sem orientação médica. Ciente das polêmicas, a Endocrine Society, entidade que representa a classe da endocrinologia internacionalmente, acaba de atualizar as regras do jogo, estabelecendo os grupos que realmente tiram proveito do hormônio, como crianças, adolescentes, gestantes e idosos, a fim de evitar prescrições e usos desnecessários e até nocivos. As diretrizes foram elaboradas por um painel de especialistas, que analisou os principais estudos sobre o tema e as questões de acesso e saúde pública pertinentes. Depois de quatro anos de trabalho, o guia pretende ser o mais universal possível, visando corrigir tanto o problema da deficiência do hormônio quanto o emprego indiscriminado. “A revisão da literatura informa não fazer sentido recorrer a cápsulas e gotas para prevenir doenças entre adultos saudáveis”, diz a endocrinologista Marise Lazaretti-Castro, professora da Unifesp, uma das autoras do documento. “É diferente do que recomendamos a pacientes com osteoporose e outras condições ósseas, que necessitam do suplemento.”
Os experts identificaram, pelos dados avaliados, um excesso na solicitação de exames para checar os níveis da substância no sangue — fenômeno amplificado após a onda de covid-19. Ainda que a vitamina D participe do nosso sistema de defesa, no período pandêmico o suplemento integrou, sem nenhuma comprovação, coquetéis para imunidade e kits de tratamento precoce. Não por menos, entre 2020 e 2022, as vendas dobraram. Em São Paulo, a demanda por testes para avaliar as taxas no corpo aumentou 14% no primeiro semestre do ano passado em relação ao mesmo período de 2022 na rede estadual. O exame nem sempre é fornecido pelo SUS ou coberto por convênios.
Com base nas pesquisas disponíveis, a Endocrine Society atesta a importância da reposição na população de 1 a 18 anos, não só para evitar o raquitismo, mas também para minimizar o risco de infecções respiratórias. Com jovens imersos em celulares e videogames, sem contato com o sol, a principal fonte do hormônio crítico para a absorção de cálcio e a formação óssea, a prescrição para adolescentes ganhou força. “A diretriz reforça que alguns grupos devem tomar a vitamina D em doses baixas e diárias sem a necessidade de dosá-la no sangue”, diz o endocrinologista Sérgio Maeda, presidente da Associação Brasileira de Avaliação Óssea e Osteometabolismo (Abrasso). A orientação se destina aos mais novos, a idosos acima de 75 anos, a gestantes (a fim de precaver complicações maternas e fetais) e a indivíduos com pré-diabetes em risco de evoluir para a doença em si.
Para os adultos saudáveis na faixa de 19 a 74 anos, a regra geral é que não há necessidade de se submeter a exames nem fazer uso de suplemento, muito menos por conta própria. “A vitamina D tomou um aspecto de bala de prata, capaz de curar tudo, mas requer prescrição, assim como fazemos com qualquer outra reposição hormonal”, afirma o endocrinologista Carlos Eduardo Barra Couri, pesquisador da USP de Ribeirão Preto. Isso porque a utilização sem critério e em altas doses oferece ameaças à saúde. “Ela pode causar, entre outras coisas, intoxicações, pedras nos rins, convulsões, arritmia e insuficiência renal.” As novas normas chegam em um momento propício, em que a população é convocada a depender menos de pílulas e telas e a adotar um estilo de vida mais ativo, de preferência ao ar livre. Eis o primeiro consenso. O segundo é que suplementos e medicamentos são, sim, muito bem-vindos, desde que você precise deles.
Publicado em VEJA de 28 de junho de 2024, edição nº 2899